O que sobra e o que resta…
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também.
«Salvar milhões de pessoas. Tratar dos doentes. Lutar contra o contágio. Conter a propagação. Liquidar o vírus. Impedir o seu regresso. Preparar meios para curar os infectados. Descobrir uma vacina. Fazer tudo isto nas melhores condições de equidade. Tratar todas as pessoas igualmente, sem favorecer classes sociais, raça, etnia, religião, origem, idade, sexo, crença ou partido. Esta é uma prioridade.
A outra prioridade é tratar do que vem a seguir. Da sociedade que se mantém de pé. Mas também daquela que fica de rastos. Ocupar-se das empresas, do emprego, do Estado, da educação, da segurança social e da justiça. Da economia que vai ser necessário reerguer. Das instituições a que vai ser preciso dar vida. Da democracia que vai sair ferida. Dos direitos individuais que vão ser diminuídos. Da tolerância que vai sair magoada. Da compaixão que vai ser pisada por muitos. Da informação que vai ser necessário salvar da morte iminente.
Fazer as duas coisas que parecem ou são contraditórias: este é o grande problema. Fazer com que os cientistas e os técnicos, sem se envolver em política, encontrem os remédios e tratem de quem necessita. Mas fazer também com que os políticos façam as leis necessárias, sem se envolver em ciência. Fazer ainda com que os serviços hospitalares e de saúde pública cumpram os seus deveres sem se envolver em ciência nem em política.
Vivemos tempos muito difíceis, inéditos para a maior parte da população, em que é frequente encontrar quem saiba tudo de tudo. Quem tenha soluções para a ciência, a administração, a economia, o emprego, a educação e tudo o resto. “Há que…”, “É só…”, “Basta…”, “O que é preciso é…” estão entre as expressões mais ouvidas nas televisões e mais lidas nos jornais! E o problema é que todos têm direito a tudo, às suas opiniões e às suas asneiras, mesmo erradas… Como todos têm o direito de viver com ansiedade, de ter medo, de imaginar soluções. Mesmo os tolos que dizem que o vírus é mortal para capitalismo e os idiotas que garantem que o vírus é o golpe de misericórdia no comunismo: todos têm direito à opinião. As asneiras e as parvoíces de muitos são a liberdade de todos. E isso é o que interessa.
É essencial tratar da doença. Encontrar as suas causas. Inventar a sua cura. Descobrir a vacina. O que se dispensa é quem aproveita para fazer contrabando de política, tão grave quanto os que fazem mercado negro de máscaras ou papel higiénico. Já se percebeu que há quem queira aproveitar para liquidar direitos dos trabalhadores, despedir precários, reformar efectivos, baixar salários, reduzir a segurança social, diminuir os impostos, tudo legalmente e de modo definitivo. Mas também já se percebeu que há quem queira liquidar a iniciativa privada, as empresas, as instituições particulares de solidariedade, o mercado, a liberdade de estabelecimento e de iniciativa.
Dar a prioridade às condições sociais e económicas, como muitos fazem, é ridículo. Ouvir um sermão esquerdista sobre a luta de classes e o sector público, a propósito do vírus, com o maior oportunismo sectário que se imagina, é convite a descrer nas capacidades de inteligência. Considerar que tem de se tratar da questão biológica e médica, sem atenção às condições sociais, económicas e políticas, é miopia indesculpável ou intenção eugenista inaceitável.
Quem tem duas assoalhadas, sem aquecimento, para seis pessoas, não tem as menores condições para “ficar em casa” e se salvar. Quem vive em lares miseráveis está condenado. Quem não tem meio de transporte seguro não tem acesso a alimentos frescos. Quem não tem instrução não percebe as recomendações. Quem vive nos arredores ou em isolamento não consegue chegar com segurança às instituições. Quem não tem emprego não consegue comprar pão. Quem é despedido não pode tratar da saúde dos seus. Quem tem pensões mínimas fica sem capacidade de acorrer ao que é necessário. Quem vive no limite da sobrevivência não chega ao que já é mais caro e inacessível. Quem não tem meios não pode contrariar os mercados negros que proliferam. Quem não tem wireless, telefones modernos, telemóveis à altura, iPad capazes, conhecimento informático avançado e assinaturas de redes, não tem meios para ser informado devidamente. Quem vive sozinho e tem problemas de deslocação fica nas margens da sociedade. Quem tem outras doenças e insuficiências vive em pânico.
É tão difícil combater ao mesmo tempo o vírus, a pobreza, o privilégio e o despotismo! É tão difícil tratar das duas coisas, do imediato e do futuro! Da saúde e da sociedade! Da vida e da democracia! É tão difícil tratar de tudo sem demagogia, sem oportunismo, sem aproveitamento político! É tão difícil deixar à ciência o que é da ciência, à política o que é da política, à cultura o que é da cultura e aos indivíduos o que é deles! É tão difícil impedir que a emergência se transforme em regra! Que a eficácia liquide a liberdade! Que a centralização de esforços se transfigure em sistema de vida! Que a vida e a saúde sejam cada vez mais o recurso colectivista e a mercadoria capitalista! Encarar estas dificuldades ou contradições é o princípio de uma sociedade decente.
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também. O necessário reforço do Estado na saúde pública e na ciência médica poderá, depois, transformar-se numa monstruosidade burocrática ou numa máquina lucrativa de mercadoria. Se a força do sistema nacional de saúde não for preservada, fácil será voltar ao seu declínio. Se muitos direitos individuais forem contidos agora, podemos ter a certeza de que, depois, será difícil voltar atrás. Se a comunicação social livre desaparecer agora, é certo e sabido que nunca mais voltará a ser o que foi nem o que deve ser. O que fizermos agora com a autoridade do Estado, a liberdade individual, a cooperação europeia ou o fecho de fronteiras nacionais é o que provavelmente ficará para depois.
Não é o vírus que fará o que quer que seja às sociedades. O destino será o que as pessoas quiserem fazer para lutar contra o vírus, pela saúde e pelo futuro. Haverá mais comunismo e mais despotismo se as pessoas quiserem. Haverá mais mercadoria e mais capitalismo se for isso que as sociedades desejam. Não é por causa do vírus que teremos, a seguir, mais liberdade, mais segurança, mais igualdade e mais decência. Se tivermos, é por causa de nós. Se não tivermos, é por nossa causa.»
(António Barreto, Opinião,Coronavírus, in Público, em 29 de Março de 2020, às 07:59)
Já alguém o afirmou que o cataclismo que sobre nós se abateu, será como "estar numa praia, à espera da chegada de um tsunami"! Julgo ser uma imagem que estará muito próxima de tudo aquilo que nos poderá acontecer, sem contudo deixar explícita a mais pequena réstia do que será...
António Barreto escolheu um outro caminho: alerta-nos a todos nós para o milhão de cenários que se nos poderão vir a colocar enquanto sociedade, depois da passagem do "tsunami", todos eles dependendo...
Do que formos capazes de fazer agora!!!...
Leoninamente,
Até à próxima
A outra prioridade é tratar do que vem a seguir. Da sociedade que se mantém de pé. Mas também daquela que fica de rastos. Ocupar-se das empresas, do emprego, do Estado, da educação, da segurança social e da justiça. Da economia que vai ser necessário reerguer. Das instituições a que vai ser preciso dar vida. Da democracia que vai sair ferida. Dos direitos individuais que vão ser diminuídos. Da tolerância que vai sair magoada. Da compaixão que vai ser pisada por muitos. Da informação que vai ser necessário salvar da morte iminente.
Fazer as duas coisas que parecem ou são contraditórias: este é o grande problema. Fazer com que os cientistas e os técnicos, sem se envolver em política, encontrem os remédios e tratem de quem necessita. Mas fazer também com que os políticos façam as leis necessárias, sem se envolver em ciência. Fazer ainda com que os serviços hospitalares e de saúde pública cumpram os seus deveres sem se envolver em ciência nem em política.
Vivemos tempos muito difíceis, inéditos para a maior parte da população, em que é frequente encontrar quem saiba tudo de tudo. Quem tenha soluções para a ciência, a administração, a economia, o emprego, a educação e tudo o resto. “Há que…”, “É só…”, “Basta…”, “O que é preciso é…” estão entre as expressões mais ouvidas nas televisões e mais lidas nos jornais! E o problema é que todos têm direito a tudo, às suas opiniões e às suas asneiras, mesmo erradas… Como todos têm o direito de viver com ansiedade, de ter medo, de imaginar soluções. Mesmo os tolos que dizem que o vírus é mortal para capitalismo e os idiotas que garantem que o vírus é o golpe de misericórdia no comunismo: todos têm direito à opinião. As asneiras e as parvoíces de muitos são a liberdade de todos. E isso é o que interessa.
É essencial tratar da doença. Encontrar as suas causas. Inventar a sua cura. Descobrir a vacina. O que se dispensa é quem aproveita para fazer contrabando de política, tão grave quanto os que fazem mercado negro de máscaras ou papel higiénico. Já se percebeu que há quem queira aproveitar para liquidar direitos dos trabalhadores, despedir precários, reformar efectivos, baixar salários, reduzir a segurança social, diminuir os impostos, tudo legalmente e de modo definitivo. Mas também já se percebeu que há quem queira liquidar a iniciativa privada, as empresas, as instituições particulares de solidariedade, o mercado, a liberdade de estabelecimento e de iniciativa.
Dar a prioridade às condições sociais e económicas, como muitos fazem, é ridículo. Ouvir um sermão esquerdista sobre a luta de classes e o sector público, a propósito do vírus, com o maior oportunismo sectário que se imagina, é convite a descrer nas capacidades de inteligência. Considerar que tem de se tratar da questão biológica e médica, sem atenção às condições sociais, económicas e políticas, é miopia indesculpável ou intenção eugenista inaceitável.
Quem tem duas assoalhadas, sem aquecimento, para seis pessoas, não tem as menores condições para “ficar em casa” e se salvar. Quem vive em lares miseráveis está condenado. Quem não tem meio de transporte seguro não tem acesso a alimentos frescos. Quem não tem instrução não percebe as recomendações. Quem vive nos arredores ou em isolamento não consegue chegar com segurança às instituições. Quem não tem emprego não consegue comprar pão. Quem é despedido não pode tratar da saúde dos seus. Quem tem pensões mínimas fica sem capacidade de acorrer ao que é necessário. Quem vive no limite da sobrevivência não chega ao que já é mais caro e inacessível. Quem não tem meios não pode contrariar os mercados negros que proliferam. Quem não tem wireless, telefones modernos, telemóveis à altura, iPad capazes, conhecimento informático avançado e assinaturas de redes, não tem meios para ser informado devidamente. Quem vive sozinho e tem problemas de deslocação fica nas margens da sociedade. Quem tem outras doenças e insuficiências vive em pânico.
É tão difícil combater ao mesmo tempo o vírus, a pobreza, o privilégio e o despotismo! É tão difícil tratar das duas coisas, do imediato e do futuro! Da saúde e da sociedade! Da vida e da democracia! É tão difícil tratar de tudo sem demagogia, sem oportunismo, sem aproveitamento político! É tão difícil deixar à ciência o que é da ciência, à política o que é da política, à cultura o que é da cultura e aos indivíduos o que é deles! É tão difícil impedir que a emergência se transforme em regra! Que a eficácia liquide a liberdade! Que a centralização de esforços se transfigure em sistema de vida! Que a vida e a saúde sejam cada vez mais o recurso colectivista e a mercadoria capitalista! Encarar estas dificuldades ou contradições é o princípio de uma sociedade decente.
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também. O necessário reforço do Estado na saúde pública e na ciência médica poderá, depois, transformar-se numa monstruosidade burocrática ou numa máquina lucrativa de mercadoria. Se a força do sistema nacional de saúde não for preservada, fácil será voltar ao seu declínio. Se muitos direitos individuais forem contidos agora, podemos ter a certeza de que, depois, será difícil voltar atrás. Se a comunicação social livre desaparecer agora, é certo e sabido que nunca mais voltará a ser o que foi nem o que deve ser. O que fizermos agora com a autoridade do Estado, a liberdade individual, a cooperação europeia ou o fecho de fronteiras nacionais é o que provavelmente ficará para depois.
Não é o vírus que fará o que quer que seja às sociedades. O destino será o que as pessoas quiserem fazer para lutar contra o vírus, pela saúde e pelo futuro. Haverá mais comunismo e mais despotismo se as pessoas quiserem. Haverá mais mercadoria e mais capitalismo se for isso que as sociedades desejam. Não é por causa do vírus que teremos, a seguir, mais liberdade, mais segurança, mais igualdade e mais decência. Se tivermos, é por causa de nós. Se não tivermos, é por nossa causa.»
(António Barreto, Opinião,Coronavírus, in Público, em 29 de Março de 2020, às 07:59)
Já alguém o afirmou que o cataclismo que sobre nós se abateu, será como "estar numa praia, à espera da chegada de um tsunami"! Julgo ser uma imagem que estará muito próxima de tudo aquilo que nos poderá acontecer, sem contudo deixar explícita a mais pequena réstia do que será...
António Barreto escolheu um outro caminho: alerta-nos a todos nós para o milhão de cenários que se nos poderão vir a colocar enquanto sociedade, depois da passagem do "tsunami", todos eles dependendo...
Do que formos capazes de fazer agora!!!...
Leoninamente,
Até à próxima
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