Tempo de os políticos falarem verdade
Quando a questão se torna de vida ou de morte, não é boa ideia estar nas mãos dos fanfarrões
«No podcast que tenho andado a gravar para o PÚBLICO, "Agora, agora e mais agora", o mais recente episódio, cujo título é Make Aristotle Great Again, menciona uma distinção clássica de Aristóteles entre dois tipos de discurso que podemos entender, no seu sentido político, como dois tipos de mentira. O primeiro é o discurso do político que nunca diz a verdade toda. O outro é o discurso do político que mente desbragadamente.
Ao primeiro, Aristóteles chama o “eíron”, ou ironista. Ao segundo, ele chama de “aleízon”, ou fanfarrão. Ambos são maus para o corpo político da sociedade.
As eleições de 2016 nos EUA, por exemplo, opunham estes dois tipos de político. Hillary Clinton era a “eíron”, ou seja, a política que era tida por nunca dizer a verdade toda sobre as coisas e que por isso passava por insincera. O problema disto é que mesmo quando ela dizia a verdade era atacada também: por ser hipócrita, por ser arrogante, ou por qualquer outro pecado real ou imaginário. Depois de décadas em que os políticos ganhadores eram exactamente deste género passou-se para outro extremo em que eles nunca poderiam ganhar: a sonsice deles fez com que o público deixasse de confiar. Por outro lado, o político-fanfarrão, de que Trump é o maior exemplo, não tem nada a perder: pode mentir, ofender, insultar, ser boçal, egocêntrico ou descaradamente interesseiro, que os seus defensores nunca o criticarão por nada disso. Não é que ignorem que Trump seja mentiroso, pelo contrário; mas consideram-no genuíno na desfaçatez. É um autêntico mentiroso, e um mentiroso autêntico. E esse foi durante uns tempos um paradoxo ganhador.
Há sinais porém de que o tempo deste tipo de políticos pode vir a passar. Quando a realidade vogava em velocidade de cruzeiro, os políticos sonsos pareciam seguros, embora aborrecidos. No pós-crise, vários eleitorados lançaram-se na aventura dos políticos fanfarrões, mas agora que a pandemia do coronavirus assusta a valer há sinais de que se podem arrepender. Os Trumps e os Bolsonaros não são o tipo de líderes em que possamos confiar numa emergência. Numa pandemia, sempre é melhor ter como líder alguém que acredita na ciência e não em charlatanices, que diz a verdade em vez de mentir, que está disposto a ouvir os especialistas em vez de os desautorizar, que se preocupa com o bem comum em vez de se ocupar exclusivamente dos seus interesses. Quando a questão se torna de vida ou de morte, não é boa ideia estar nas mãos dos fanfarrões.
Quer isso dizer que estaremos condenados a voltar ao modelo anterior de política e de políticos? Esperemos que não.
Aristóteles não se limitou a descrever os dois tipos de discurso como o do “ironista” ou insincero, e o do “aleízon” ou fanfarrão. Fiel ao seu método de identificar e valorizar o meio onde estava a virtude, Aristóteles aponta-nos o caminho para um discurso que permitiria sarar as feridas de confiança política de que agora padecemos, e deu-lhe o nome de “parrhesia”, ou sinceridade. A “parrhesia” define-se como o falar franco, sincero, verdadeiro e sem entraves. Especialmente precioso em tempos como os que correm, em que a verdade pode salvar vidas.
Dizer verdade não impede um político de mobilizar, dar esperança e ganhar os cidadãos. Pelo contrário, por longo e árduo que seja o caminho, esta é agora a única forma de recuperar a confiança perdida pela política. Quando temos a vida em risco, somos capazes de aceitar sacrifícios em troca de nos dizerem a verdade, e só depois de nos terem dito a verdade acreditaremos na esperança.
É este o momento de os políticos decidirem que tipo de líderes querem ser. Nacionalmente, vimos nos últimos dias os efeitos que cada tipo de discurso pode ter. Quando António Costa declarou que até agora “nada tinha faltado” ao SNS e nada se previa que viesse a faltar, foi recebido com incredulidade e o consequente desânimo. Toda a gente sabe que já há faltas no SNS e é difícil acreditar que não venha a haver mais ainda, se se negar a realidade das faltas presentes. Mas quando, passados dias, António Costa reagiu às declarações do ministro das finanças neerlandês sobre os níveis de dívida de certos países da UE considerando-as “repugnantes”, a reacção colectiva foi de compreensão e apoio, para lá de considerações sobre a conveniência diplomática das declarações, precisamente porque elas foram vistas como um momento de um “falar franco e sem entraves” nos quais as pessoas podem acreditar.
A partir daqui ainda há muito caminho a fazer, e muito dele é mais feito de obstáculos do que de facilidades. No combate à epidemia, como no combate pela solidariedade europeia, não podemos iludir-nos quanto à dificuldade do que temos pela frente. Não basta afirmar o que queremos ou dizer o que nos estava preso na alma para que a quarentena seja mais curta ou os outros passem a concordar com as nossas propostas. Não precisamos que os políticos nos prometam o que não podem cumprir. Precisamos é que nos digam a verdade sobre o que querem conseguir.»
(Rui Tavares, historiador e fundador do Livre, in Público, hoje às 05:41)
(Rui Tavares, historiador e fundador do Livre, in Público, hoje às 05:41)
Sobre as dificuldades que em qualquer momento se desenham no nosso horizonte, nenhum de nós terá dúvidas em escolher...
Entre a crueza da Verdade e a piedade da mentira!...
Leoninamente,
Até à próxima
E em falando de políticos, que venha o diabo e faça a escolha!
ResponderEliminarSim amigo, mas que os 'diabos' que todos possamos ser, façam boa escolha!...
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