Confiança e bom senso
A maior perda a que esta crise nos pode levar é a da nossa própria humanidade. É pensarmos em nós e não nos outros
1. Se queremos vencer esta crise que, de um dia para o outro, virou o nosso mundo, próximo e distante, de pernas para o ar, há dois ingredientes que me parecem fundamentais: confiança e bom senso. Confiança em quem nos governa, confiança nas instituições, confiança nos outros e confiança em nós próprios. Na quarta-feira à noite, numa conferência de imprensa já tardia, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, usou uma expressão que resume o que está em causa: manter a “cadeia de confiança” a funcionar. Referia-se ao SNS. Respondia às muitas perguntas sobre o que tinha sido feito neste ou naquele caso. Lembrava que nos hospitais há hierarquias capazes de detectar os problemas e agir em conformidade.
Graça Freitas tem sido alvo de muitas críticas, o que não admira: é ela a face mais constante e mais visível da resposta do país a esta crise. Uma face serena, incansável, inteligente, humana, verdadeira. Só nos podemos congratular por estar onde está. Quando disse há 15 dias que, no pior dos cenários, um milhão de portugueses poderia vir a ser infectado, caiu-lhe quase todo o mundo em cima. Hoje, quando Angela Merkel anuncia a mesma coisa para 60% dos alemães, ouvem-se elogios à clareza e coragem da chanceler e algumas críticas (ainda que bastante mais contidas) a António Costa por não ter carregado ainda mais nas tintas da sua intervenção de quinta-feira à noite. Isto deve-se, provavelmente, à compreensível ansiedade de cada um, à exigência de que tudo funcione perfeitamente desde o primeiro dia, como se fosse possível, a uma necessidade doentia de protagonismo que ainda emerge com demasiada frequência e, finalmente, a uma interpretação que nem sempre é a mais certa da missão de cada um nesta crise.
Mesmo assim, os partidos da oposição conseguiram vencer as tentações perversas dos primeiros dias (ouvir Paulo Mota Pinto dizer que o PSD não aceitaria que o Governo usasse o álibi do novo coronavírus para não cumprir as metas de crescimento da economia é bastante assustador). Temos um primeiro-ministro com as características pessoais e políticas indispensáveis para saber liderar a mobilização do país. Olhando à nossa volta, até temos alguma razão para nos sentirmos com sorte neste capítulo. Temos boas razões para confiar, sem deixar de manter o espírito crítico.
2. Vivemos numa democracia, o único sistema político onde a crítica é absolutamente livre, tal como a liberdade de expressão. Ambas apenas dependem do critério e do sentido de responsabilidade de cada um. Mas também vivemos um daqueles momentos muito raros das nossas vidas em que, antes de falarmos, temos obrigatoriamente de pensar. A comunicação social — uma das raras indústrias que muito provavelmente não vai ser atingida pela crise porque produz um bem que se tornou vital — tem uma obrigação ainda maior. É dela que depende a informação que chega aos cidadãos. É nela que os cidadãos devem confiar. Cada palavra pesa. Cada crítica tem de ser ponderada. O bom senso é, como quase sempre, o melhor dos conselheiros. Até porque a palavra “erro” é outra das palavras-chave para sabermos enfrentar esta crise.
Uma das suas principais características — e uma das mais assustadoras — está no facto de a ciência não ter respostas prontas a serem usadas para enfrentá-la. Habituámo-nos a viver em sociedades altamente desenvolvidas, onde a ciência avança a uma velocidade vertiginosa. Desta vez, não podemos contar totalmente com ela, ou, pelo menos, não o podemos fazer no curto prazo. A resposta ao vírus só pode, portanto, ser feita errando e corrigindo. Errando o menos possível a partir do que sabemos e corrigindo o mais depressa possível. Aceitando que aqueles que nos governam também terão necessariamente de errar. Compreendendo que os meios de combate a uma crise que não tem mais de dois meses não podem estar todos a funcionar no dia em que ela começa ou mesmo dois meses depois.
Marta Temido, mais ainda do que Graça Freitas, tem sido alvo de críticas constantes. Não há nada até agora no seu comportamento que faça com que a consideramos inapta para desempenhar as funções que ocupa. Ontem, no Parlamento, resumiu numa frase a extrema dificuldade da sua missão: “Não estivemos parados, mas, como todos os outros, tememos não estar preparados.” O que nos leva a um dos mais gritantes exemplos da nossa irritante tendência para o “bota-abaixismo” nacional que se pode revelar particularmente prejudicial.
3. Passámos os últimos anos a praticar tiro ao alvo contra o SNS. Até à exaustão ou até à náusea. Hoje, todos precisamos de ter confiança nele. E creio que podemos ter confiança nele. Consultemos as estatísticas oficiais da União Europeia ou da OCDE. Em 2018, o sistema público de saúde português ocupava a 13.ª posição num conjunto de 35 países europeus e estava acima da média, se considerados apenas os 28. À nossa frente estavam os nórdicos mais a França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica, Holanda, mas também a Noruega e a Suíça. Atrás de nós, a Espanha, a Itália, o próprio Reino Unido, cujo NHS já foi um caso exemplar, e todos os países da Europa Central e de Leste, incluindo a República Checa, considerada o melhor de entre eles (nem tudo se resume ao crescimento do PIB, como facilmente se constata). Em 2017, estávamos em 14.º e em 2016 em 15.º.
Claro que o todo pode esconder a fraqueza de algumas das partes. Não estamos bem colocados (embora tenhamos melhorado bastante) no número de camas em Unidades de Cuidados Intensivos por habitante. É uma fragilidade que vai ser preciso corrigir numa situação de emergência como esta. Mas temos médicos de qualidade reconhecida no mundo inteiro, temos enfermeiros apreciados nos países mais exigentes, temos acesso às melhores tecnologias e aos medicamentos mais inovadores à escala mundial. Temos boas razões para confiar. Como foi referido num dos debates da Conferência do PÚBLICO “Portugal… e agora?”, os mais recentes indicadores dizem que uma maioria de portugueses confia no SNS. Como também foi mencionado, é um sector onde os avanços científicos e tecnológicos são incorporados automaticamente, independentemente do seu custo, por vezes, elevadíssimo. Há quem critique esta “generosidade” num país envelhecido e com recursos escassos. Para quem, como eu, é contra a eutanásia (embora respeite muitos dos argumentos de quem é a favor), esse argumento não serve.
4. Numa das entrevistas mais esclarecedoras a que pude assistir nos últimos dias, o pneumologista Filipe Froes explicou o que esteve na origem da dimensão que esta crise atingiu em Itália. Fê-lo com base nas conversas com alguns dos médicos italianos que estiveram no centro da explosão da epidemia. Começou por lembrar que o sistema de saúde pública em Milão (e na Lombardia) é do melhor que há, o que se compreende numa região que não é apenas a mais rica de Itália, mas uma das mais ricas da Europa. Contou a história do paciente chinês que, em Janeiro, veio de Wuhan (o epicentro da crise) para uma intervenção cirúrgica em Milão, quando ainda se sabia muito pouco sobre o que se estava a passar na China, ou talvez não se prestasse a devida atenção. Contagiou o cirurgião, internado no mesmo hospital e sujeito a tratamentos hospitalares específicos que facilitam a transmissão do vírus. O contágio foi exponencial antes mesmo do alarme geral.
5. A forma como formos capazes de enfrentar esta pandemia depende tanto da capacidade de liderança do Governo como da competência do SNS, como da missão de informar dos media, como do debate livre, responsável e informado, como — ou talvez mais do que tudo — da responsabilidade de cada um de nós. As conversas e comportamentos que ouço ou vejo na rua não são ainda totalmente tranquilizadoras. Temos um tempo muito curto para aprender. Se alguém me explicar qual é a diferença entre os jovens que aproveitaram o encerramento das escolas para ir até à praia e os adultos que se acotovelam nos supermercados, enchendo furiosamente os carrinhos com tudo a que podem deitar a mão, agradeço.
Uma última reflexão. A maior perda a que esta crise nos pode levar é, porventura, a da nossa própria humanidade. É pensarmos em nós e não nos outros. É esquecermos que temos um dever que vai para além das nossas fronteiras nacionais e europeias, ao abrigo das quais vivemos uma vida protegida. É esquecermos que há uma humanidade comum.»
1. Se queremos vencer esta crise que, de um dia para o outro, virou o nosso mundo, próximo e distante, de pernas para o ar, há dois ingredientes que me parecem fundamentais: confiança e bom senso. Confiança em quem nos governa, confiança nas instituições, confiança nos outros e confiança em nós próprios. Na quarta-feira à noite, numa conferência de imprensa já tardia, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, usou uma expressão que resume o que está em causa: manter a “cadeia de confiança” a funcionar. Referia-se ao SNS. Respondia às muitas perguntas sobre o que tinha sido feito neste ou naquele caso. Lembrava que nos hospitais há hierarquias capazes de detectar os problemas e agir em conformidade.
Graça Freitas tem sido alvo de muitas críticas, o que não admira: é ela a face mais constante e mais visível da resposta do país a esta crise. Uma face serena, incansável, inteligente, humana, verdadeira. Só nos podemos congratular por estar onde está. Quando disse há 15 dias que, no pior dos cenários, um milhão de portugueses poderia vir a ser infectado, caiu-lhe quase todo o mundo em cima. Hoje, quando Angela Merkel anuncia a mesma coisa para 60% dos alemães, ouvem-se elogios à clareza e coragem da chanceler e algumas críticas (ainda que bastante mais contidas) a António Costa por não ter carregado ainda mais nas tintas da sua intervenção de quinta-feira à noite. Isto deve-se, provavelmente, à compreensível ansiedade de cada um, à exigência de que tudo funcione perfeitamente desde o primeiro dia, como se fosse possível, a uma necessidade doentia de protagonismo que ainda emerge com demasiada frequência e, finalmente, a uma interpretação que nem sempre é a mais certa da missão de cada um nesta crise.
Mesmo assim, os partidos da oposição conseguiram vencer as tentações perversas dos primeiros dias (ouvir Paulo Mota Pinto dizer que o PSD não aceitaria que o Governo usasse o álibi do novo coronavírus para não cumprir as metas de crescimento da economia é bastante assustador). Temos um primeiro-ministro com as características pessoais e políticas indispensáveis para saber liderar a mobilização do país. Olhando à nossa volta, até temos alguma razão para nos sentirmos com sorte neste capítulo. Temos boas razões para confiar, sem deixar de manter o espírito crítico.
2. Vivemos numa democracia, o único sistema político onde a crítica é absolutamente livre, tal como a liberdade de expressão. Ambas apenas dependem do critério e do sentido de responsabilidade de cada um. Mas também vivemos um daqueles momentos muito raros das nossas vidas em que, antes de falarmos, temos obrigatoriamente de pensar. A comunicação social — uma das raras indústrias que muito provavelmente não vai ser atingida pela crise porque produz um bem que se tornou vital — tem uma obrigação ainda maior. É dela que depende a informação que chega aos cidadãos. É nela que os cidadãos devem confiar. Cada palavra pesa. Cada crítica tem de ser ponderada. O bom senso é, como quase sempre, o melhor dos conselheiros. Até porque a palavra “erro” é outra das palavras-chave para sabermos enfrentar esta crise.
Uma das suas principais características — e uma das mais assustadoras — está no facto de a ciência não ter respostas prontas a serem usadas para enfrentá-la. Habituámo-nos a viver em sociedades altamente desenvolvidas, onde a ciência avança a uma velocidade vertiginosa. Desta vez, não podemos contar totalmente com ela, ou, pelo menos, não o podemos fazer no curto prazo. A resposta ao vírus só pode, portanto, ser feita errando e corrigindo. Errando o menos possível a partir do que sabemos e corrigindo o mais depressa possível. Aceitando que aqueles que nos governam também terão necessariamente de errar. Compreendendo que os meios de combate a uma crise que não tem mais de dois meses não podem estar todos a funcionar no dia em que ela começa ou mesmo dois meses depois.
Marta Temido, mais ainda do que Graça Freitas, tem sido alvo de críticas constantes. Não há nada até agora no seu comportamento que faça com que a consideramos inapta para desempenhar as funções que ocupa. Ontem, no Parlamento, resumiu numa frase a extrema dificuldade da sua missão: “Não estivemos parados, mas, como todos os outros, tememos não estar preparados.” O que nos leva a um dos mais gritantes exemplos da nossa irritante tendência para o “bota-abaixismo” nacional que se pode revelar particularmente prejudicial.
3. Passámos os últimos anos a praticar tiro ao alvo contra o SNS. Até à exaustão ou até à náusea. Hoje, todos precisamos de ter confiança nele. E creio que podemos ter confiança nele. Consultemos as estatísticas oficiais da União Europeia ou da OCDE. Em 2018, o sistema público de saúde português ocupava a 13.ª posição num conjunto de 35 países europeus e estava acima da média, se considerados apenas os 28. À nossa frente estavam os nórdicos mais a França, Alemanha, Luxemburgo, Bélgica, Holanda, mas também a Noruega e a Suíça. Atrás de nós, a Espanha, a Itália, o próprio Reino Unido, cujo NHS já foi um caso exemplar, e todos os países da Europa Central e de Leste, incluindo a República Checa, considerada o melhor de entre eles (nem tudo se resume ao crescimento do PIB, como facilmente se constata). Em 2017, estávamos em 14.º e em 2016 em 15.º.
Claro que o todo pode esconder a fraqueza de algumas das partes. Não estamos bem colocados (embora tenhamos melhorado bastante) no número de camas em Unidades de Cuidados Intensivos por habitante. É uma fragilidade que vai ser preciso corrigir numa situação de emergência como esta. Mas temos médicos de qualidade reconhecida no mundo inteiro, temos enfermeiros apreciados nos países mais exigentes, temos acesso às melhores tecnologias e aos medicamentos mais inovadores à escala mundial. Temos boas razões para confiar. Como foi referido num dos debates da Conferência do PÚBLICO “Portugal… e agora?”, os mais recentes indicadores dizem que uma maioria de portugueses confia no SNS. Como também foi mencionado, é um sector onde os avanços científicos e tecnológicos são incorporados automaticamente, independentemente do seu custo, por vezes, elevadíssimo. Há quem critique esta “generosidade” num país envelhecido e com recursos escassos. Para quem, como eu, é contra a eutanásia (embora respeite muitos dos argumentos de quem é a favor), esse argumento não serve.
4. Numa das entrevistas mais esclarecedoras a que pude assistir nos últimos dias, o pneumologista Filipe Froes explicou o que esteve na origem da dimensão que esta crise atingiu em Itália. Fê-lo com base nas conversas com alguns dos médicos italianos que estiveram no centro da explosão da epidemia. Começou por lembrar que o sistema de saúde pública em Milão (e na Lombardia) é do melhor que há, o que se compreende numa região que não é apenas a mais rica de Itália, mas uma das mais ricas da Europa. Contou a história do paciente chinês que, em Janeiro, veio de Wuhan (o epicentro da crise) para uma intervenção cirúrgica em Milão, quando ainda se sabia muito pouco sobre o que se estava a passar na China, ou talvez não se prestasse a devida atenção. Contagiou o cirurgião, internado no mesmo hospital e sujeito a tratamentos hospitalares específicos que facilitam a transmissão do vírus. O contágio foi exponencial antes mesmo do alarme geral.
5. A forma como formos capazes de enfrentar esta pandemia depende tanto da capacidade de liderança do Governo como da competência do SNS, como da missão de informar dos media, como do debate livre, responsável e informado, como — ou talvez mais do que tudo — da responsabilidade de cada um de nós. As conversas e comportamentos que ouço ou vejo na rua não são ainda totalmente tranquilizadoras. Temos um tempo muito curto para aprender. Se alguém me explicar qual é a diferença entre os jovens que aproveitaram o encerramento das escolas para ir até à praia e os adultos que se acotovelam nos supermercados, enchendo furiosamente os carrinhos com tudo a que podem deitar a mão, agradeço.
Uma última reflexão. A maior perda a que esta crise nos pode levar é, porventura, a da nossa própria humanidade. É pensarmos em nós e não nos outros. É esquecermos que temos um dever que vai para além das nossas fronteiras nacionais e europeias, ao abrigo das quais vivemos uma vida protegida. É esquecermos que há uma humanidade comum.»
(Teresa de Sousa, in Público, em 15-03-2020)
Será que a natureza e a dureza da catástrofe que sobre nós se abateu nos vai tornar um povo melhor?! Um povo mais sábio e generoso?! É que...
"Temos um tempo tão curto para aprender"!!!...
Leoninamente,
Até à próxima
"Temos um tempo tão curto para aprender"!!!...
Leoninamente,
Até à próxima
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