domingo, 29 de março de 2020

Aqueles pobres coitados 'fundilhos europeus'!...


Somos um país desenvolvido
As coisas ainda vão piorar antes de melhorarem. Haverá um momento em que exigiremos mais e mais aos outros e menos a nós próprios. O apoio ao primeiro-ministro e ao Governo não vai manter-se aos níveis actuais. Esse é precisamente o teste que lhe cabe vencer.

1. Perdemos a noção do tempo. Não sabemos literalmente o que acontecerá amanhã. A crise pandémica no nosso país tem um mês. Parece-nos que se prolonga há uma eternidade. Vivemos num filme de ficção do qual nunca pensámos vir a ser actores. Ainda confiamos em quem tem como função liderar a resposta a esta tremenda crise. No Governo, nas instituições, no SNS, no supermercado, na farmácia. Temos consciência de que as coisas vão piorar. Quando o número de vítimas mortais já não for de 100, mas de 500. Quando a pandemia atingir níveis de infectados muito mais altos. Quando o confinamento se prolongar por meses. Manteremos a boa vontade e a disciplina? Continuaremos a confiar em quem nos tem de governar através desta tempestade? Manteremos a nossa humanidade? Não temos a resposta. Vivemos um dia de cada vez. Precisamos de ter consciência de que nos outros países europeus, no resto do mundo, rico ou pobre, as pessoas vivem a mesma circunstância. Muitas delas em mil vezes piores condições.

2. Há alguns sinais deste nosso novo modo de vida colectivo que nos dão razões de esperança. Percebemos no último mês por que é que Portugal integra o grupo de países classificados como desenvolvidos. As nossas instituições funcionam bem. O Estado dispõe da massa crítica suficiente para saber responder com o que de mais avançado existe em matéria de conhecimento, avaliação e resposta à pandemia. Os nossos laboratórios científicos podem não vir a descobrir a vacina, mas têm a capacidade suficiente para produzir testes. As empresas têm capacidade de desviar a sua produção para material médico sofisticado, como ventiladores. Como a maioria dos países europeus como nós.

Os principais órgãos de soberania – Presidente, Assembleia, Governo – conseguem funcionar em harmonia, contribuindo para manter a confiança dos cidadãos. A crítica é totalmente livre, o que aumenta a nossa capacidade de corrigir os erros o mais depressa possível. Finalmente, o debate público começa a fazer-se de forma mais serena e, consequentemente, mais útil. Passou a ideia de que o país tinha de estar preparado no primeiro dia da crise. Está a ser corrigida a crítica à lentidão de algumas das medidas do Governo. Podemos avaliar com precisão a capacidade de resposta dos vários serviços de saúde essenciais quando deixamos de ouvir queixas. Já ninguém se queixa da linha SNS24. O alarme sobre os lares foi útil e começa a perder intensidade. As insinuações ou as críticas bem-intencionadas sobre o rigor e a veracidade da informação diariamente fornecida pelas autoridades nacionais de saúde foram-se desfazendo perante a clareza e a inteligência de Graças Freitas ou de Marta Temido e dos seus secretários de Estado e da visível competência de quem dirige instituições públicas tão importantes como o Infarmed. Mantém-se o debate sobre o equipamento de protecção de médicos, enfermeiros e outro pessoal do SNS. E há alguns sinais preocupantes de “guerras” desnecessárias, como a da Ordem dos Enfermeiros contra os médicos, que teriam, alegadamente, primazia na realização de testes.

Mas podemos ir testando a evolução da situação justamente através desse debate constante, distinguindo quem é sério de quem gosta demasiado de protagonismo (também é isso que fazemos quando as coisas correm normalmente), não ouvindo apenas aqueles que denunciam a falta de equipamento, mas também os que contrariam esse receio. Já ouvimos os médicos que são os principais responsáveis pelo funcionamento de dois grandes hospitais de referência – o Curry Cabral e o Hospital de São João – garantir que o material não tem faltado. Mais tarde ou mais cedo, se a pandemia for relativamente contida, deixaremos de ouvir estas queixas. Ou poderemos voltar a ouvi-las se os piores cenários acabarem por acontecer. Como em Espanha ou na Itália.

3. Queremos tudo agora. É natural. Temos de fazer um esforço para compreender os limites. A questão dos testes é outra que gera uma enorme controvérsia. Compreende-se, quando ouvimos notícias de que alguns dos casos de maior sucesso no combate à pandemia, como a Coreia do Sul ou a Alemanha, recorreram a uma grande utilização de testes. Ficou-nos no ouvido a mais recente orientação da OMS: “Testem, testem, testem.”

Vale a pena ouvir com atenção as explicações que vão sendo dadas pelas autoridades de saúde sobre a situação e sobre a estratégia. A partir do momento em que não se podem testar dez milhões de portugueses, colocam-se imediatamente duas questões: a primeira é o número de testes disponíveis, que é finito; a segunda, que decorre desta, a definição de critérios. Portugal, como todos os outros países que dispõem de meios para o fazer, tem de ir aos mercados. A concorrência é forte e a produção limitada à escala mundial, porque ninguém, nem nós nem os outros, por mais ricos que sejam, se preparou antecipadamente para esta pandemia.

Há um exercício que a maioria das pessoas não pode fazer, mas que a imprensa pode – e deve – fazer: ler diariamente o maior número possível de grandes jornais estrangeiros que cobrem o mundo inteiro e que reflectem quotidianamente os dramas e as dificuldades dos seus próprios países. Percebemos imediatamente que as nossas dificuldades não são nem maiores nem menores dos que as dos países com os quais nos devemos comparar, estando em primeiro lugar os europeus.

Claro que as democracias ocidentais têm culturas diferentes. A iniciativa da sociedade civil é maior no mundo anglo-saxónico, habituado a não depender do Estado para tudo. No Reino Unido, responderam 405 mil voluntários a um apelo do Governo para conseguir 250 mil. Os britânicos ainda transmitem de pais para filhos a experiência dos anos da guerra, quando resistiram quase sozinhos à barbárie nazi. Outras democracias – como a nossa – tendem a esperar quase tudo do Estado, mesmo que adorem criticá-lo. A França tem uma cultura parecida, mas não a Suécia ou os Países Baixos, onde foram postas em prática estratégias idênticas às que o Reino Unido começou por adoptar e pelas quais o Governo britânico foi tão duramente criticado.

Em quase todos os nossos parceiros europeus, a ameaça de ruptura dos respectivos sistemas de saúde públicos existe, quando já não aconteceu. A capacidade de montar grandes hospitais de campanha é grande, tanto cá como lá, contrariando a ideia absolutamente nefasta de que só a China, com o seu regime autoritário, conseguiu construir hospitais numa semana. São imensos os recursos disponíveis nas nossas sociedades democráticas sem pôr em causa as liberdades fundamentais e o funcionamento das instituições. Mesmo que, nesta crise, como noutras de dimensão equivalente, o papel do Estado seja absolutamente fundamental – para salvar vidas, para manter o país a funcionar, para impedir a destruição do tecido económico e social.

4. As coisas ainda vão piorar antes de melhorarem. Haverá um momento em que exigiremos mais e mais aos outros e menos a nós próprios. O apoio ao primeiro-ministro e ao Governo não vai manter-se aos níveis actuais. Esse é precisamente o teste que lhe cabe vencer.

Entretanto, na frente europeia, que é a nossa principal circunstância, pode ser que os egoísmos nacionais que vieram ao de cima, alguns com uma virulência inusitada, acabem por dar lugar a um sentimento de verdadeira partilha de destino, que é essa a essência da integração europeia. Ninguém se salvará sozinho. E se até o Presidente Trump acabou por perceber que tinha de estender a mão a Xi ou dialogar com Macron, depois da fase do “vírus chinês” ou do perigo de contaminação vinda da Europa, talvez Mark Rutte consiga estender a mão a Giuseppe Conte ou a Pedro Sánchez. O que está em causa é o futuro da Europa, mas é também o futuro das suas democracias. A crise financeira deixou-nos uma vaga de populismos e nacionalismos que se tornaram um desafio às democracias liberais. Os Países Baixos não foram excepção. Pelo contrário, até foram precursores. Se a Europa servir de pouco aos povos europeus, Thierry Baudet ou Geert Wilders, a nova e a velha face da extrema-direita holandesa, já ganharam.»
(Teresa de Sousa, Análise Coronavírus, in jornal Público, hoje às 06:10)

Em tempo de isolamento, cada vez vai sendo mais agradável ouvir e ler que afinal seremos um "país desenvolvido" que caminha hoje no pelotão da frente dos que conseguiram aprender com a História e maior a nossa recusa em aceitar aquela maledicência tradicional que, sobrando ainda por aí em tantos becos e ruelas, parece a caminho de ser erradicada do nosso adn.

Teresa de Sousa de há muito que nos mostra um jornalismo sério que, sem chauvinismos tolos e despropositados, nos ensina a transformar a nossa proverbial 'má-língua', num sentimento de comedido orgulho daquilo que somos e fazemos. Uma seguidora convicta do exemplo que, felizmente, raro será o dia em que não nos chegue da mais alta figura política deste nosso 'cantinho europeu', o professor Marcelo Rebelo de Sousa!...

Não seremos afinal e, com orgulho, começamos a  recusar ser...

Aqueles pobres coitados 'fundilhos europeus'!...

Leoninamente,
Até à próxima

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