quarta-feira, 22 de abril de 2020

Nem que seja apenas pela rama!...


Nada vai mudar na Europa, e porém...
Se queremos melhor, talvez só abandonando as posições catastrofistas de quem sonha com o fim do euro e passando a contribuir para o trabalho de construção de uma verdadeira democracia europeia.

«Mas afinal de contas de que maneira muda o mundo com aqueles acontecimentos históricos de que se diz que mudam o mundo? Vou dizer-vos uma coisa: não é certamente mudando a opinião de ninguém que esteja apostado em nunca mudar de opinião.

O que geralmente acontece nestes "dias que mudaram o mundo" é toda a gente que já tinha uma opinião firme sair do acontecimento com uma opinião ainda mais firme do que antes. A seguir a cada “dia que mudou o mundo” há sempre uma torrente de artigos de opinião a dizer como aquele acontecimento prova que toda a gente deveria mudar agora de opinião… para passar a ter a opinião que o autor já prova antes. A forma como os acontecimentos históricos mudam o mundo não é portanto mudando a opinião de ninguém, mas extremando de tal forma as opiniões que algumas acabam por deixar de ter o solo firme dos factos por debaixo delas. Não é tanto nas opiniões que alguma coisa muda, é naquilo que lenta e gradualmente a grande maioria de pessoas sem opinião formada vai deixando de poder acreditar.

É assim que, do alto dos meus dotes proféticos, eu vos posso dizer exactamente o que se passará após o Conselho Europeu de amanhã. Os chefes de Estado e de governo sairão da reunião com o esboço de um fundo de recuperação da economia europeia, proclamando um compromisso histórico para o projecto europeu. Passado algumas horas, os comentadores que estão apostados em ver nesta crise a repetição da crise de 2010-11 irão proclamar que aquele compromisso não muda nada e que o euro e a UE caminham a passos largos para o abismo.

Como navegar no meio destas indicações contraditórias? Em primeiro lugar, notando como as sinalizações que elas nos vão dando também mudam ao longo do tempo. Em 2010-11 os chefes de Estado e de governo, bem como os outros líderes das instituições europeias e do Banco Central Europeu, também saíam de cada reunião proclamando que tinham encontrado uma solução histórica para o euro e que a crise estava resolvida. Perderam aí uma confiança por parte dos cidadãos que nunca voltaram verdadeiramente a reconquistar. Nessa altura, quem lesse os meus textos seria capaz de me chamar um pessimista sobre o euro, porque desconfiei da maior parte desses anúncios, e fui sempre dizendo que sem, pelo menos, um Banco Central Europeu como emprestador de último recurso, o euro não resolveria os seus problemas.

A minha posição era nessa época frustrante para muitos euro-entusiastas que queriam ver em cada novo anúncio uma nova solução federal para a zona euro. Mas não era, e não foi, assim. As coisas mudaram só a partir do momento em que Mario Draghi declarou que faria o que fosse necessário para salvar o euro e sinalizou que estaria disposto a comprar dívida dos Estados-membros, no mercado secundário, mas em grandíssimas quantidades capazes de alterar as taxas de juro.

A partir daí comecei a apanhar tareia principalmente dos anti-euristas que queriam ver em cada acontecimento o fim do euro, ou um prenúncio da saída do euro por parte de Grécia e Portugal, sem se darem conta de que para sair do euro unilateralmente seria necessário sair da UE, e que a maior parte das populações destes países não queriam sacrificar-se para satisfazer as obsessões ideológicas dos anti-euristas que se recusavam a entender que o panorama tinha de facto mudado. Tal como uma questão de fé tinha levado muitos a crer que as soluções já tinham chegado antes do BCE comprar dívida a sério, uma questão de fé de sentido oposto levou o outro campo a não perceber que a crise do euro tinha acabado e a querer permanentemente a sua recriação.

Esse campo continua a não perceber a diferença entre a crise de 2010-11 e a de agora. O que pedíamos então? Que ao menos o BCE fosse emprestador de último recurso dos Estados. É preciso uma especial cegueira para não ver que hoje o BCE é esse emprestador, e bem mais do que de último recurso. Os 750 mil milhões que o BCE anunciou para esta crise, mais as compras ilimitadas de dívida que fará aos países que recorrerem ao Mecanismo Europeu de Estabilidade é uma das razões por que os juros das dívidas soberanas não se descontrolaram já.

E quanto aos eurobonds? O debate vai hoje mais avançado do que eu julgaria possível até há uns meses. Deste Conselho Europeu poderá sair um instrumento de recuperação de cerca de um bilião de euros que use uma espécie de dívida da União em vez de dívida mutualizada. Essa é uma solução que eu já defendia em 2012, e continua a ser positiva. Claro que será sempre possível dizer que nada disto basta, até porque a moda agora é exigir aquilo que não se pedia antes, e dizer que sem financiamento directo do BCE nada feito. Andar a mudar os postes da baliza não faz nenhum bem à coerência de uma posição intelectual.

De forma que a minha previsão para esta semana é: vamos ouvir dizer que nada mudou na Europa. E porém, sem grande agilidade nem golpe de asa, a verdade é que alguma coisa vai mudando. Se queremos melhor, talvez só abandonando as posições catastrofistas de quem sonha com o fim do euro e passando a contribuir para o trabalho de construção de uma verdadeira democracia europeia.»
(Rui Tavares, historiador e fundador do Livre, Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 00:00)

Estará a cometer um tremendo erro todo o adepto de futebol que, passada que parece estar a fase crítica desta pandemia, julgue que toda a economia e em particular o desporto-rei recuperarão de imediato com um simples estalar de dedos. Mais avisados e certos andarão os que pensam que toda e qualquer recuperação económica, independentemente do sector em causa, apenas acontecerá ante os nossos olhos, se a UE se comportar como verdadeira união. É por isso que o Conselho Europeu de amanhã terá a importância que Rui Tavares e todos os analistas lhe reconhecem.

Claro que a complexidade dos temas que amanhã os grandes líderes europeus discutirão entre si por videoconferência, nada terá a ver com as discussões sobre arbitragens a que os amantes do futebol dedicam boa parte do seu tempo. Mas isso não deverá impedir-nos de, neste momento difícil que todos estamos a viver, gastarmos alguma da nossa energia na compreensão dos grandes problemas que necessariamente terão de estar na origem do arranque do grande motor da recuperação económica dos 27 povos europeus...

Nem que seja apenas pela rama!...

Leoninamente,
Até à próxima

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