quinta-feira, 9 de abril de 2020

Faltará apenas uma palavra para o definir!...

Gabriela Gomes

Covid-19: o pico em Portugal já pode ter passado. E isso não traz só boas notícias
Abril ainda terá de ser um mês de muita contenção e cautelas, mas os dados da última semana já permitem perceber que as medidas de contenção estão a ter resultados. Matemática especialista em epidemiologia, Gabriela Gomes diz que no seu modelo o pico da infecção já passou. DGS também já o terá admitido em reunião

«Gabriela Gomes é matemática especialista em epidemiologia na Escola Superior de Medicina Tropical de Liverpool e traz boas notícias, rodeadas de cautelas e avisos: esta não é ainda a hora de relaxar. Mas é a hora de dizer que as medidas de contenção estão a funcionar e que, segundo o modelo matemático que aplicou aos dados de que dispõe, já passámos o pico da infecção.

“Os meus modelos matemáticos não mostram, não consigo em cenário nenhum, ver um pico em Maio. Acho que nós já passámos o pico.” Gabriela Gomes gostaria de ter informação sobre os modelos que estão a ser usados pela Direcção-Geral da Saúde, mas ainda não conseguiu ter acesso a essa informação. “Talvez estejam a falar no pico de mortalidade, que acontece mais tarde do que o pico da infecção. Eu estou a fazer modelos para a dinâmica da infecção, que é o que é interessante para a matemática”, explica.

E o que diz o modelo de Gabriela Gomes? Há três curvas desenhadas. Uma que prevê o aumento de casos diários numa situação em que nada é feito para conter o vírus, outra que prevê um cenário de mitigação (em que os contactos entre as pessoas seriam reduzidos em 40%) e outra que reflecte um cenário de supressão (menos 75% de contactos entre pessoas). É neste terceiro cenário que Gabriela Gomes considera que Portugal está. “Quando falamos de uma estratégia de mitigação, o pico vai para a frente. Quando falamos numa estratégia de supressão, o pico vai para trás. Estou muito satisfeita, porque parece que Portugal está a ir por uma estratégia de supressão. Se a decisão fosse minha, essa seria a minha escolha. Porque na situação de mitigação, apesar de ficarmos com mais população imune, os custos são muito altos”, explica.



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Mas, há sempre um mas aqui. Neste caminho da supressão que, segundo o modelo de Gabriela Gomes, está a ocorrer em Portugal, o número de casos novos por dia vai ser cada vez menor, cada vez menor, cada vez menor, até que a curva fique plana. Mas a imunidade de grupo não acontece. O que significa isto? Significa que, quando “abrirmos as portas”, ficaremos mais expostos à possibilidade de uma segunda onda epidémica. Por isso é que é essencial, a partir de agora, começar a pensar no que teremos de fazer para que tal não aconteça.

Há outro indicador, além dos novos casos diários, que mostra que o pico pode de facto já ter passado, e é o chamado R0 (um indicador que mede o número médio de infecções geradas por cada pessoa infectada). No modelo de Gabriela Gomes, Portugal já está com um R0 abaixo de 1, que basicamente é o que toda a gente quer. Mas não é só o modelo desta cientista portuguesa que mostra este dado. O indicador de reprodução da infecção também desceu do 1 no modelo da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP) e situava-se nesta terça-feira, 7 de Abril, em 0,98. André Peralta-Santos, médico de saúde pública da ANMSP, explica que este indicador a que chamam Rt “tem em conta o número de pessoas que já deixaram de ser susceptíveis à infecção”. O facto de pela primeira vez este valor ser menor do que 1 “é uma boa notícia e indica que podemos já ter atingido o pico”. Ricardo Mexia, também da ANMSP, gostaria de ter acesso a mais dados, nomeadamente dados de início de sintomas, para poder ser mais assertivo e responder afirmativamente ao que chama “a pergunta do milhão de dólares”: já atingimos ou não o pico? 

Bernardo Gomes, médico de saúde pública e professor na Faculdade de Medicina e no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, diz que já anda com “um bom sorriso de optimismo moderado e prudente”. Os números da última semana começaram a mostrar que não estávamos num crescimento exponencial, que não estamos a percorrer o caminho de Espanha e Itália, e os dados avançados por Gabriela Gomes devem ser atendidos: “Devemos começar a ouvir pessoas como ela, porque os ajustes e as premissas que está a usar são de maior sofisticação face a outras circunstâncias.”

Segundo fontes contactadas pelo PÚBLICO, a ideia de que o pico passou também foi falada na sessão técnica com especialistas e responsáveis políticos que decorreu nesta terça-feira. De acordo com os dados recolhidos pelos especialistas até agora, a evolução diária do número de casos parece indicar que estamos no “planalto” da curva e o pico pode já ter sido entre os dias 23 e 27 de Março. No entanto, estes dados ainda estarão sujeitos a reajustes. Só depois se poderá antecipar o início da descida, com o aumento do número de casos diários a reduzir das centenas para as dezenas de novos casos.

Com 12 242 pessoas infectadas, 345 mortos e 184 pessoas recuperadas, não é hora de relaxar. Talvez apenas de respirar fundo e perceber que, se a estratégia está a funcionar, cumpri-la é fundamental. “Nós ainda não estamos livres do perigo, mas o que parece que os números estão a oferecer de forma factual é que estamos a conseguir abrandar”, explica Bernardo Gomes. E há incertezas no horizonte.

“O acumular de casos e hospitalizações deixa-nos uma variável em aberto, que é a de que há muita gente que ainda pode descompensar. O decurso da doença para cuidados intensivos não é imediato. Há uma percentagem das pessoas que estão internadas que podem precisar de cuidados invasivos. A alimentação dos cuidados intensivos nos próximos dias também vai depender das pessoas que estão internadas e temos de ser cautelosos. Agora, sem dúvida que a evolução dos dados dos cuidados intensivos é do melhor que temos a registar”, refere o médico de saúde pública. Ontem, o número de internados em unidades de cuidados intensivos era de 271, mais um do que no dia anterior, e havia 1180 pessoas internadas.

“Acho que podemos ter algum optimismo moderado face a isto, mas isso não significa, em nada, que podemos aligeirar as medidas já. Precisamos de percorrer um caminho até ficarmos seguros em relação à capacidade de resposta do sistema de saúde. Temos de estar, presumo que até final de Abril, com estímulo dessas medidas, para sermos capazes de pensar que, de forma diferente, todos têm de cumprir o seu papel. Cada pessoa, cada freguesia, cada concelho, cada distrito, cada administração regional de saúde, cada ministério, toda a gente tem de estar muito bem preparada para o que se segue: abrir aos poucos e tentar navegar as águas que se seguem. Para tentarmos ter uma vida social e económica mais sustentável, mas também para não deixarmos fugir o comboio da infecção.”

Bernardo Gomes gosta de usar a metáfora da mata: “A mata que estava inicialmente disponível para arder pela acção do vírus foi severamente condicionada pelas nossas opções. Os caminhos que a mata tinha por onde arder foram condicionados. E vamos ter de o continuar a fazer.”

Pedro Simas, virologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM), também acredita que as medidas funcionaram. “A forma como Portugal actuou, na altura em que actuou, permitiu que a nossa taxa de fatalidade fosse pequena, o que significa que a situação está mais ou menos controlada em número de infectados.” Ou seja, as medidas de distanciamento social funcionaram.

“Tudo sugere que tenhamos atingido o pico, porque isolámos as pessoas”, refere Pedro Simas. Mas as “medidas de contenção têm de se manter” para dar continuidade ao resultado. Até porque, salienta, “não resolvemos o problema da ameaça pandémica”. “Se as pessoas voltarem à normalidade, virá uma segunda vaga porque o vírus continua a circular”, diz.

A solução é criar imunidade populacional, o que implica que é preciso que 60% a 70% da população tenha imunidade a este vírus. “Só existem duas formas de o fazer: ou por infecção natural ou por vacinação. A vacina não vai estar pronta em menos de 18 meses. Só resta uma solução, a infecção natural.”

“Excluindo o grupo de risco, a previsão é que 98% da restante população lide com o vírus de uma forma ligeira. Se conseguíssemos libertar essa população, que o vírus infectasse naturalmente, construíamos a imunidade populacional. Mas tínhamos de garantir que a população de risco não estava a ser infectada. Tem outro problema ético. Mesmo nesta população que não é de risco, uns terão problemas graves, mas é uma proporção mínima. Se tivesse uma vacina, também isso ia acontecer, porque não há nenhuma vacina que proteja a população a 100%”, contextualiza. Como o fazer sem correr o risco de ter uma subida exponencial de casos e de mortalidade nos grupos de risco? Pedro Simas explica que conjugando o teste de PCR em tempo real, que diz se uma pessoa está infectada, com o teste serológico, que permite ver se uma pessoa tem imunidade e se ainda é ou não portadora do vírus. E a que se junta uma quarentena selectiva aplicada aos grupos de risco para os proteger ao máximo da infecção.

Quanto ao grupo de risco, “uma das formas de o proteger é que só sejam as pessoas que já estão imunes a contactar com este grupo”. E enquanto essa imunidade populacional não existir, há que tomar todas as medidas de distanciamento social e de protecção possíveis. Para o especialista, é fundamental que se envolvam todas as estruturas governativas, da sociedade e famílias e que se explique bem à população todos os riscos. Assim como é fundamental que todas as alterações, feitas de forma faseada, sejam muito bem monitorizadas.

Se Abril parece ser o mês de todas as contenções, Maio poderá ser o mês em que vamos começar a abrir o cordão? “Temos de reduzir isto a níveis muito, muito baixos e depois temos de ver como manter esses níveis baixos. Abrimos e, se voltar a subir, voltamos a suprimir. E temos de estar nessa disposição durante algum tempo. É um ano esquisito que estamos a viver e temos de aprender a lidar com isto”, explica Gabriela Gomes.

Bernardo Gomes aponta alguns caminhos e esclarece que há opções “intermédias” que podem ser usadas nesse futuro em que começaremos a ter de sair de casa. Dá um exemplo: “Zonas de menor densidade populacional poderiam começar a fluir com outro à-vontade. Zonas do interior, fora das grandes áreas metropolitanas de Porto, Lisboa, Braga, Aveiro, Coimbra poderiam começar a ter uma vida mais normal, com menos restrições. Só que tudo isso são cálculos que têm de ser feitos e implicam opções políticas bastante difíceis. Não é fácil navegar um sistema em que a qualquer momento se pode ter de voltar para trás.”

Filipe Froes não quer arriscar dizer que já passámos o pico. “Temos de maximizar todas as medidas para continuarmos a assistir à evolução dos dados epidemiológicos em Portugal, para o mais rapidamente possível se atingir o pico e retomar a vida normal”, afirma o pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a covid-19. “Acho que ainda não temos dados para avaliar com rigor em que fase estamos, se ascendente ou a atingir o pico.”

É nesta maximização de medidas que inclui o uso mais alargado de máscaras, como sugeriu em idas aos supermercados por serem espaços onde é mais difícil manter o distanciamento social. A ideia de “esmagar a curva” só é possível com a “maximização das medidas tomadas e com a minimização do risco”. “O alívio das medidas tem de ser muito fundamentado para não ser feito antes do tempo”, defende.

Bernardo Gomes elogia a ideia de conter as pessoas nos seus concelhos durante o período da Páscoa, mas adianta que tem de haver um plano para depois. “Devemos ter um optimismo moderado face ao que estamos a ver, mas devemos preparar-nos muito bem para o que não vemos. Respeito muito o que vejo, mas respeito ainda mais o que não estou a ver. Portanto, optimismo com juízo e com a noção de que há atitudes que vamos ter de manter durante meses, como o distanciamento social, o uso de máscara aqui e acolá, a evicção dos eventos de massas. A vida que era já não volta, deixou de ser, mas haverá uma vida nova para lá disto.”


Para além de um simples mas sentido obrigado às jornalistas Ana Maia e Rita Ferreira do jornal Público, por um dos melhores trabalhos que me tem sido dado apreciar neste sofrido contexto, curvo-me humildemente perante o saber e sensibilizantes, para não lhes chamar patrióticas, preocupação e avisadas cautelas de Gabriela Gomes, André Peralta-Santos, Ricardo Mexia, Bernardo Gomes e Pedro Simas.

Como cidadão minimamente informado, embora consciente do minúsculo grão de areia que serei neste terrível desafio colectivo que se nos vem colocando, apenas me assaltarão algumas reservas sobre a definição do real estágio em que nos encontraremos nesta decisiva fase da luta contra a pandemia: mitigação ou supressão? A própria Gabriela Gomes confessa as suas dúvidas, alegando ainda não ter informação cabal sobre os modelos que estarão a ser usados pela Direcção Geral de Saúde. A minha sensibilidade aponta para que se verifique neste momento uma redução de contactos em mais de 40% da população portuguesa, mas julgo que ainda estaremos longe de atingir os 75%, quiçá algo em torno de 'meio caminho' entre "mitigação" e "supressão", a exigir a introdução de um novo conceito, este genuinamente português que, sem o idealismo de alcançar a máxima redução de custos e sofrimento, talvez venha a permitir alcançar, apenas com algum incremento de tempo, um significativo e reconfortante nível de imunidade da nossa população.

Faltará apenas uma palavra para o definir!...

Leoninamente,
Até à próxima

3 comentários:

  1. Interessante fazer um paralelo com a gripe asiática de 1957. Entre nos teve caracter benigno mas com cerca de 1050 óbitos. Os registos da população de Lisboa referm que 64,5 % da população foi afetada, sobretudo nas zona mais populosas. Os grupos etários mais atingidos foram os de 5-9, 10-14 e 15-19.Os primeiros casos surgiram em Agosto mas em Outubro com o inicio do ano escolar a gripe propafgou-se o que levou ao encerramento das escola, fabricas e alguns quarteis.
    Na resto da Europa a gripe teve um maior gru de gravidade, sobretudo em Paris, Londres, Zurique, Bruxelas , Viena de Austria e na União Soviética.
    Em todo o mundo a gripe asiática provou 4 milhões de mortes.

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    1. A "asiática" apanhou-me com 10 anos e, na aldeola de 500 pessoas onde vivia, se bem me recordo, não houve um único infectado! Outros tempos e a tão grande distância, a ideia que hoje faço tive de a beber nos registos hoje disponíveis. Na mesma aldeia onde nasci, hoje com quase a mesma população, sei que o número de infectados já estará quase a chegar à dezena. Na minha qualidade de leigo absoluto nesta matéria, apenas espero e desejo que os números de hoje não cheguem aos que refere...

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    2. Também fui apanhado mais ou menos por aí. Lá em casa, todos cairam de cama, os pais e o irmão. Eu não tive qualquer sintoma. Na região onde vivia, familias inteiras foram atingidas mas não se registaram mortes.
      Os dados que referi são da DGS. De realçar a virulência mais leve entre nos.
      SL

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