Alto risco para Vieira e Varandas
«Dizia com cinismo um antigo ministro brasileiro, Delfim Netto, que o órgão mais sensível do corpo humano é o bolso. No futebol, a mesma sensibilidade é despertada com vitórias e bons espectáculos. No Benfica vão quatro jogos sem ganhar e uma qualidade de jogo sofrível. No Sporting, até à saída de Peseiro, eram as péssimas exibições que pontuavam o seu curto reinado. Das bancadas, tolerância zero para ambos os treinadores e uma enorme falta de pachorra para discursos remediados, desajustados e irritantes. Só que enquanto Vieira segura teimosamente Rui Vitória, Varandas já matou o assunto. Contudo, a gestão e escolha dos treinadores pode tornar-se um lance de alto risco para os dois presidentes.
Vieira empurrou com a barriga para a frente os problemas, menciona mirificamente uma conquista da Champions para enganar os mais incautos e vai testando Jorge Jesus. Ao contrário de muitos observadores, compreendo esta opção por dois motivos: 1- inequivocamente, o homem que até trouxe a chuva à Arábia Saudita é um grande treinador e tem o melhor palmarés ao serviço dos encarnados; 2- depois, e esse é o lado que está a ser esquecido pelos comentadores, Jesus é uma poderosa máquina de comunicação e o seu carisma levaria os holofotes para si, ajudando o clube a distrair o foco das inúmeras e graves questões judiciais que impendem sobre a Luz. Teríamos um treinador competente, bom comunicador e "fixer" de uma crise reputacional que ameaça perpetuar-se, seria o «três em um» perfeito.
A pedrinha na engrenagem é que a maioria dos benfiquistas já não saliva com gosto ao ouvir o nome de JJ e torce o nariz à ideia. Todos perceberam que Rui Vitória já não é solução, apenas um problema que se agudiza diariamente, olvidando as conquistas anteriores, o lançamento de jovens talentos que potenciou para boas vendas. O futebol é o momento e muitas vezes é cruel, tem pouca memória, seguindo o seu caminho não ligando a justiças ou injustiças. O certo é que Rui Vitória entrou numa maré irreversível à Peseiro e, como ele, pode soçobrar a qualquer hora. Vieira até pode armar um discurso musculado em defesa do ribatejano, mas sabe que é impossível a sua manutenção.
Em Alvalade entra um homem que ninguém conhece. Um treinador com dez anos de carreira e apenas com pouco mais de 20 jogos na Eredivisie. O Sporting teve os dois últimos vencedores de campeonatos, Inácio e Boloni, sem currículo impressionante, porém, nesta altura, os adeptos esperavam algo mais sedutor e com um perfil mais robustecido. Marcel Keizer é quase o homem invisível, só Varandas - que em termos de sigilo na escolha conduziu muito bem o processo levando durante quatro dias a um bailado de nomes que eram meros exercícios de adivinhação da imprensa – e um seu lugar-tenente o vislumbraram. Seria mais seguro para o novel presidente manter o máximo de tempo possível Peseiro, numa perspectiva defensiva de perpetuação no cargo, pois se as coisas corressem mal, as responsabilidades seriam sempre de Sousa Cintra. Varandas optou por seguir a sua razão e instinto, dando quase um tiro no escuro e pondo a cabeça no cepo com a opção que tomou e que terá de ser bem explicada no momento fulcral para a gestão das expectativas na apresentação do holandês. O seu futuro estará irreversivelmente ligado ao trajecto de Keizer. Uma decisão arriscada, mas a sorte às vezes protege os audazes.»
(Rui Calafate, Factor Racional, in Record)
Nesta crónica, como em tantas outras e tantos outros apontamentos seus, está a razão da admiração e amizade que Rui Calafate há muito me merece! Seriam muito escassas as probabilidades de encontrar um texto com a perspicácia, a racionalidade e a elegância que este revela, num outro qualquer jornalista, analista ou comentador, confessadamente adepto de um clube diferente do Sporting...
Um abraço Rui Calafate!...
Leoninamente,
Até à próxima
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