Marega, as bestas ululantes e a lixeira do futebol
Esta gente olha para o futebol como um delírio carnavalesco, um momento de suspensão de todas as regras de civilidade
«O que aconteceu a Marega em Guimarães não é novidade. Não foi um “episódio”. Não foi um acaso. Não foi um “incidente”. Aquilo que lhe aconteceu foi um dia normal num estádio de futebol. Qualquer pessoa que costume ir à bola já ouviu aqueles urros dezenas e dezenas de vezes. Gritos obscenos a imitar símios sempre que um jogador adversário de pele negra toca na bola, se aproxima da linha fi nal ou marca um livre. São centenas, talvez milhares de pessoas, aos gritos de “uh-uh-uh-uh”, todos unidos a urrar e a celebrar a mais reles grunhice colectiva.
Note-se que estas bestas ululantes não são sempre ululantes, e também é possível que não sejam sempre bestas. Quando chegam a casa, talvez dêem um beijinho de boa-noite ao filho, e no dia seguinte talvez visitem a mãe velhinha. Com boa probabilidade, os que insultaram Marega foram os mesmos que vibraram com o golo de Éder no Euro 2016. Eles adoram os seus pretos — apenas odeiam os pretos dos outros. É um racismo selectivo e intermitente, de quem está convencido que é permitido ser grunho durante 90 minutos ao fi m-de-semana, porque as regras comuns da decência e da convivência não se aplicam nos estádios de futebol.
Infelizmente, as bestas ululantes não chegaram a essa conclusão por acaso - há toda uma cultura que permite os urros e os alimenta. Quando o assunto é futebol, as televisões aceitam que os comentadores gritem de uma forma que jamais gritariam em qualquer outro tipo de debate; os jornalistas aceitam que a honestidade intelectual é um botão que se liga ou desliga, consoante se está a falar de bola (altura em que se pode ser absolutamente cavernícola) ou de política nacional (altura em que convém voltar a ser sofisticado); os deputados do tipo Ventura aceitam como perfeitamente normal defender a cultura de corrupção desportiva na TV ao mesmo tempo que atacam com fervor a cultura de corrupção política na AR.
Os exemplos poderiam continuar.
Esta gente olha para o futebol como um delírio carnavalesco, um momento de suspensão de todas as regras de civilidade. Quando o assunto é bola, é permitido ser desonesto, desbragado e desprezível — não é para levar a mal. Marega, abençoado seja, levou muito a mal, e o momento em que decidiu sair do jogo de Guimarães, resistindo durante vários minutos aos puxões e aos pedidos para ficar da sua própria equipa, fez mais pela decência do futebol do que mil tarjas espalhadas pelas bancadas e milhares de criancinhas de mãos dadas a apelar ao fair-play.
O caso Marega só se tornou um caso porque ele teve a coragem de reagir aos insultos constantes de que os jogadores negros são alvo nos estádios de futebol. Marega fez a sua parte. Agora falta o resto — falta limpar a lixeira do futebol. Com excepção dos jogadores e de alguns treinadores, quase tudo o resto leva décadas de esterqueira a céu aberto, começando nos presidentes dos clubes, descendo para as claques, passando pelos gabinetes de comunicação e acabando nos comentadores fanatizados. A luta de Frederico Varandas e da direcção do Sporting contra o poder das claques tem sido escandalosamente solitária; a justiça tem pactuado sistematicamente com o estado das coisas; e sempre que lhe cheira a bola, os políticos metem o rabinho entre as pernas e fogem da confusão. O meu desejo é que mil Maregas floresçam, a ver se os estádios de futebol voltam a ser locais onde um tipo decente possa ter orgulho em levar os filhos, em vez de serem esta vergonha que se vê.»
(João Miguel Tavares, Opinião, in Público, hoje às 06:38)
Ao deparar com este artigo de opinião de João Miguel Tavares, a quem, ainda que de forma indirecta, me ligam estreitos laços familiares, veio-me à memória algo sobre a "honestidade intelectual", que recolhi em tempos na seara de um quase anónimo licenciado em direito duma universidade brasileira - será já hoje, segundo julgo e para além disso, mestre em filosofia! -, e que defendia "ser necessário descermos do pedestal em que amiúde nos colocamos e renunciarmos à pretensão de sermos portadores da 'verdade universal', ao mesmo tempo que precisamos de elevar o nosso nível de consideração por aquilo que outros falam, levando-os a sério. Todos beneficiaremos com debates abertos, sérios e honestos, principalmente se não estivermos apenas preocupados em 'ganhá-los', julgando essa possibilidade sempre e em absoluto ao nosso alcance"...
Exactamente porque não acreditando que a maior fatia da sociedade que somos - e nessa a camarilha política a quem continuamos a oferecer o poder de mão beijada! - algum dia seja capaz de trilhar o caminho apontado por Rafael Barros de Oliveira, nem que, "pour cause", os desejos de João Miguel Tavares se venham a cumprir, vejo as "bestas ululantes" continuarem a frequentar, impunemente e "à sua maneira", os nossos estádios, por mais que "mil Maregas floresçam"!...
Quisera eu que as justas lutas de Marega, Varandas e poucos mais, não viessem a jazer num curto amanhã, injusta e infelizmente, nos cemitérios das...
Arremetidas quixotescas!...
Leoninamente,
Até à próxima
Excelente artigo de JMT.
ResponderEliminarNa minha opinião colocar Varandas e Marega no mesmo ponto do trajecto desta discussão não corresponde à realidade, mais, não me parece intelectualmente honesto. O Varandas estará a escrever direito, sim, mas sobre linhas muuuuuuito tortas. O Marega fartou-se.
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