A ‘LigaVírus’ já percebeu o filme?
«Vamos lá a colocar então os pontos nos is, nesta fase denominada de ‘novo normal’ (que expressão mais infeliz!):
1. Quando a pandemia fez ‘parar o Mundo’, ou pelo menos travar as dinâmicas enlouquecidas, a indústria do futebol estava sentada em cima da sua sistémica arrogância, a empurrar com a barriga sinais de descontrolo e megalomania orçamental.
2. Essa indústria nunca percebeu ou nunca quis perceber que, no domínio da gestão financeira (clubística), alguma coisa estava profundamente errada e, mais dia menos dia, ia ser questionada e ameaçada perante o aparecimento de cada vez maior número de situações de pré-falência.
3. Não foi possível até agora travar os excessos de uma indústria global que sofre, entre outras, de duas patologias: 1) especulação negocial, potenciada por quem faz movimentar muitos milhões na periferia dos clubes ou das sociedades anónimas, provocando-lhes grave depreciação. 2) nenhuma intervenção ao nível da economia paralela do futebol, com muito pouca exigência na caracterização dos investidores e nas incompatibilidades que se geram entre eles e os agentes de intermediação, não se sabendo, às tantas, ‘quem é quem’.
4. A Covid-19 veio denunciar as profundas debilidades e contradições de uma indústria supostamente poderosíssima e a necessidade de um recuo urgente e, agora, inevitável e forçado.
5. A Covid-19 agravou uma situação disruptiva e desagregadora, a potenciar cada vez maiores desníveis entre uma classe de ‘clubes ricos’ e os ‘outros’ (classificados em diversos patamares de pobreza ou remediação); não foi a CAUSA do pânico que se gerou no futebol profissional, em Portugal.
6. A pandemia teve como primeira consequência, no futebol, a paragem dos campeonatos e com essa paragem a ‘Covid-19’ transformou-se no espelho que reflectiu a imagem de um rei… nu. Sim, nu.
7. O desporto-rei, esse maravilhoso ‘monstro sagrado’ capaz de agregar no seu regaço todo o tipo de sensações e habitualmente em condições de correr sobre montanhas e oceanos, apresentava-se afinal tão despido de recursos, talvez com uma parra de videira a esconder o seu verdadeiro… ‘género’.
8. O ‘género’ correspondente a uma daquelas figuras da banda desenhada que, com mais ou menos músculo; com mais ou menos massa cinzenta (massa tecnológica, melhor dizendo) se revelam inexpugnáveis e indestrutíveis, saciando e criando uma sensação de bem-estar entre os seus consumidores.
9. Este herói de banda desenhada e do ‘futebol artificial’ mostrou que, afinal, todos os músculos exibidos até 2020 eram resultado de perigosas combinações químicas, potencialmente explosivas.
10. Foi a paragem abrupta e sobretudo o quadro de pré-falência do futebol profissional que obrigaram a face mais visível do dirigismo desportivo a pressionar o Governo a permitir a retoma das competições, mas só no que diz respeito ao cumprimento do que resta da I Liga.
11. Esta obrigação de ‘não paragem’ da competição de elite determina uma série de distorções – e é preciso ter humildade para aceitar isso.
12. Sei que não é ‘politicamente correcto’, mas considero justa a revolta de alguns emblemas que foram as grandes vítimas das decisões da FPF e Liga: Praiense, Olhanense, Real Massamá, Fafe, Lusitânia de Lourosa, Benfica e Castelo Branco e ainda Cova da Piedade e Casa Pia. Eles foram fuzilados contra a parede de um interesse maior, que – para além das condicionantes e dos reflexos no plano sanitário – reduz a muito pouco o valor da verdade desportiva.
13. Não é para já o ‘fim do Mundo’, mas não ter qualquer juízo crítico sobre a realidade futebol pré-Covid, atrás dos resultados desportivos, é pior do que alinhar incondicionalmente a favor da retoma das competições, mesmo que isso produza vítimas indirectas e evidentes entorses na verdade desportiva.
14. O que nos querem dizer é que entre mergulhar numa bacia com ácido agora ou esperar pela forca mais tarde é preferível mergulhar na bacia.
15. O que não nos dizem é que o mergulho nessa ácida bacia não elimina o rótulo de ‘condenados’, se não houver uma rapidíssima marcha-atrás em relação aos clássicos procedimentos.
16. Todos desde o início tiveram a consciência do que representaria uma paragem.
17. É bom ter a noção, igualmente, de que houve sectores que paralisaram, como por exemplo o do turismo e não se gerou a mesma agitação.
18. Se estamos no domínio do risco e da protecção de indústrias, os critérios têm de ser justos e não resultantes de qualquer tacticismo eleitoral.
19. O futebol tem o seu peso na economia (0,2 do PIB), deve reorganizar-se e reflorescer, mas as suas organizações tutelares não devem pensar que, em qualquer contexto, representa a coisa mais importante das sociedades.
20. Esta paragem disse isso mesmo.
21. Seria bom que os nossos dirigentes desportivos de proa se convencessem que o futebol, com esta paragem, perdeu valor. E que a recuperação desse valor, noutros moldes, tem de ser feita à conta da aquisição de respeitabilidade e com o envolvimento de todos – e não, no caso português, com a aposta nos métodos e no ruído de sempre.
22. Tenho muitas dificuldades em acreditar nisso, mas a pandemia não trouxe apenas novas sensações. Trouxe novos imperativos.
23. O futebol vai ter de se regenerar. De encontrar novos caminhos, seguramente com uma nova mentalidade. De assentar os pés na terra e deixar de apostar em fórmulas mágicas e artificiais, que engordam a economia paralela.
24. Que venha, enfim, o que resta da ‘VírusLiga’, mas sempre conscientes de que ela – nas suas múltiplas deformações sanitárias, laborais, físicas, psicológicas, técnico-tácticas, etc. – só salva alguma coisa se todos estiverem empenhados em mudar tudo aquilo que levou o futebol português ao colapso.
25. A FIFA e a UEFA tinham de assumir responsabilidades que não assumiram (em tempo útil) e as federações e as Ligas serem envolvidas nesse processo.
26. Assim, temos este ‘novo normal’ que é, convenhamos, uma anormalidade, com efeitos que ainda ficam por apurar.
27. Não sei se já deram por isso, mas houve um futebol que morreu e o que lhe está a suceder vai sofrer e já está a sofrer enormes mutações.
28. Não sei se a ‘LigaVírus’ já percebeu o filme.
29. Parece-me ainda demasiadamente convencida do êxito das velhas realizações.
30. A agitação que se vai seguir na procura do campeão nacional da ‘LigaVírus’ vai-nos fazer sentir ainda mais raiva perante a Covid-19.»
* Texto escrito com a antiga ortografia
Será que iremos todos sentir "raiva" ou será asco?!...
Leoninamente,
Até à próxima
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