O que se pode esperar de um jogador de futebol que lê José Saramago?
«Francisco Geraldes, jogador do Sporting, foi fotografado a ler um livro de José Saramago no banco dos suplentes, antes de um jogo de preparação. E o que é espantoso, aqui, é o espanto, a dúvida e a desconfiança que a foto (a prova do "crime") suscitou. De repente, um jogador a ler um livro de Saramago numa hora morta era tão estranho, tão extraordinário, como o nascimento de um tigre com duas cabeças no zoo da Maia.
Eis o preconceito, a crença numa suposta incompatibilidade entre acção (o futebol) e pensamento (a literatura). Vem de longe. Pahiño, um avançado do Real Madrid dos anos 50, trazia sempre com ele um livro para aproveitar as horas mortas nas viagens e hotéis. Num dia em que o jogo lhe correu mal, um jornalista escreveu: "O que se pode esperar de um jogador que lê Tolstoi e Dostoievsky?" Pois bem, era a uma pergunta assim que, agora, queriam chegar todos os que fizeram de um não-facto uma notícia. Vi um programa de televisão em que a apresentadora perguntava ao painel: "Jorge Jesus não estranhará? Isso não pode prejudicar o jogador?" Lá está: o que se pode esperar de um jogador que lê Saramago? Lamentava um dos comentadores (António Figueiredo): "Um livro como aquele, tão pesado...". O peso: eis o problema. Se fosse um livro de Margarida Rebelo Pinto, ou a revista Lux, estava tudo bem. Mas o "Ensaio sobre a Cegueira"... Um jogador de futebol, que é um ser de instinto, forçar a tal ponto o sistema cognitivo... Não interferirá isso com a sua outra condição?
O que se pode esperar de um jogador que lê Tolstoi ou Saramago é, naturalmente, o mesmo que se pode esperar de um outro que só consegue ler as letras gordas dos anúncios. Porém, persiste ainda o temor de que um excesso de consciência possa inibir de algum modo o saber do corpo. A culpa é da natureza do jogo, que se afasta dos domínios do consciente (e de tudo o que é culturalmente adquirido), accionando secretos mecanismos instintivos. O futebol dirige-se à nossa irracionalidade, a esse não-humano que desde sempre nos habita. Sabemos que a racionalidade é um utensílio maravilhoso, mas existem coisas que excedem o espírito humano e o futebol é uma dessas. Ele devolve o homem que o joga a uma primeira natureza, instintiva, que se opõe à segunda natureza do pensamento e da consciência; e esse, o animal humano, dificilmente se interessa por algo tão distinto como a cultura densa. Daí que, nos longos estágios, a maioria dos jogadores frequente actividades ligeiras: jogos de bilhar, de cartas, vídeo-jogos e filmes do 007, tudo coisas que não pesem na cabeça, como queria o outro.»
(Álvaro Magalhães, Opinião, in O Jogo)
Com a preciosa ajuda de Álvaro Magalhães penso ter entendido finalmente essa terrífica moda que parece ter tomado conta da "corporação" dos jogadores de futebol em relação aos "artísticos" cortes dos seus cabelos: com muito raras excepções, todos eles procuram evitar "coisas que lhes pesem na cabeça, como queria o outro"!...
Quanto à questão central que AM nos trouxe nesta sua avisada crónica, muitos sportinguistas entre os quais me incluo, viram-se na necessidade de alterar substancialmente o género de leitura já enraizada nos seus hábitos ao longo dos últimos anos, afastando-se decididamente de "cartilhas facebuquianas e leituras de cordel", devido à má influência do Chico Geraldes!...
Por essas e por outras é que o rapaz foi espairecer até Vila do Conde!...
Leoninamente,
Até à próxima