domingo, 19 de abril de 2020

Felizes dos que lavam as mãos e o espírito com sabão azul!...


António Costa tem razão
A Europa sobreviverá a uma segunda crise em menos de 10 anos, ainda mais devastadora que a anterior?

«1. António Costa endureceu as críticas aos países europeus que insistem em lidar com esta crise como lidaram com a crise financeira que rapidamente se transformou numa crise do euro e da própria União. Não poupa publicamente a Holanda que lidera esse grupo, com os governos da Áustria e da Finlândia a esconderem-se silenciosamente por trás. Poupa a Alemanha, que distingue dos outros três. Internamente, começam a ouvir-se algumas vozes críticas do comportamento do primeiro-ministro. Em dois sentidos. Primeiro, que o seu discurso é apenas para consumo interno. Segundo, que as coisas não se fazem assim na União Europeia e que ele deveria reservar as suas palavras mais duras para o segredo do Conselho Europeu. Podem parecer palavras razoáveis. Não são.

Mark Rutte já respondeu ao seu homólogo português, que o tinha acusado de parecer querer sair da União, perguntando-lhe de volta se era ele que queria sair do euro. O primeiro-ministro holandês está a ver o filme ao contrário. É precisamente porque Portugal não quer abandonar o euro que as críticas de António Costa são tão veementes.

2. Recuemos aos primeiros dois anos da crise das dívidas soberanas que se transformou numa crise do euro. Em cima da mesa estiveram vários cenários possíveis, até à intervenção salvadora de Mario Draghi no Verão de 2012. É bom lembrar que só na noite de 9 para 10 de Maio de 2010 – um fim-de-semana –, perante a iminente abertura dos mercados financeiros, a chanceler alemã percebeu que a sua insistência na “cláusula de no bail-out” do Tratado de Maastricht deixara de ser possível, aceitando a primeira intervenção financeira da União para salvar a Grécia da bancarrota. Merkel viu à sua frente o abismo, quando percebeu que, se a Grécia caísse, desencadearia um dominó que conduziria ao fim abrupto da união monetária europeia.

Até essa altura, e mesmo depois, alguns governos europeus, incluindo o alemão, tinham colocado em cima da mesa a saída da Grécia da zona euro. No dia 11 de Novembro de 2011, numa cimeira a dois, Merkel e Sarkozy “despediram” publicamente um primeiro-ministro de um Estado-membro – no caso, George Papandreou, quando lhes comunicou que não garantia que o “programa de ajustamento” imposto ao seu país fosse aceite pelos gregos e que queria sujeitá-lo a referendo.

Criou-se, então, a narrativa segundo a qual havia dois tipos de países: os “justos” e os “perdulários” que tinham andado a gastar “acima das suas posses”, passando convenientemente uma borracha sobre o papel da gigantesca crise financeira de 2008 no colapso das suas finanças. O “whatever it takes” de Draghi foi suficientemente poderoso para convencer os mercados de que falava verdade quando disse que estava preparado para fazer tudo, “mas mesmo tudo”, para salvar o euro. Nos anos seguintes, o cenário do colapso do euro foi afastado, não se falou mais em expulsar ninguém, os “programas de ajustamento” foram aplicados. O resto da história, conhecemo-la bem.

Pergunta: alguém acredita que uma resposta idêntica à actual crise, muito mais profunda nas suas consequências económicas e sociais, que tem a particularidade de ser simétrica, afastando o chamado “risco moral” que justificou os programas de austeridade, vai ser aceite pacificamente pelos cidadãos europeus dos países mais vulneráveis às suas consequências? Não creio. Qualquer cidadão de um país do Sul perguntar-se-á com toda a legitimidade: a Europa é isto? É este o preço que vou ter de pagar eternamente para ter euros na algibeira? É fácil de imaginar qual possa ser a maioria das respostas, mesmo em países tão pró-europeus como o nosso. O discurso alternativo segundo o qual, em termos estratégicos, vale a pena estar no euro e na União, até pode ser verdadeiro. É demasiado abstracto para mobilizar uma maioria.

É isto que está hoje em causa. A Europa sobreviverá a uma segunda crise em menos de 10 anos, ainda mais devastadora que a anterior? É por isso que o primeiro-ministro tem sido tão duro nas suas críticas a um país cuja primeira reacção foi apontar o dedo a Espanha e dizer que, se não tinha margem para enfrentar a tragédia que se abatia sobre ela, a culpa era sua. Quem aceitar esta lógica, ponha dedo no ar. Não. António Costa não está a falar para consumo interno. Está a falar para a Europa. Porque sabe melhor do que ninguém que o nosso destino colectivo depende hoje, mais ainda que no passado, das decisões que a União tomar.

3. Segunda questão. Devia fazer as suas críticas baixinho e de preferência no sossego do Conselho Europeu? Mais uma vez, há aqui duas questões. A primeira está em que a dimensão desta crise não tem nada a ver com as anteriores e, consequentemente, as formas de enfrentá-la em comum também não. Fingir que estava tudo bem seria, no mínimo hipocrisia e, no máximo, total irresponsabilidade.

A questão seguinte é a velha ideia de sermos “bem-comportados” ou “alunos diligentes” de professores mais severos ou mais simpáticos. Está errada hoje, como estava ontem e como sempre esteve. Porquê? Há países superiores, que dão lições, e outros inferiores, que as recebem? A Europa não é isso e quando for isso, acaba. Não temos de ser todos “alemães” ou “franceses” ou “italianos” ou “holandeses” ou “suecos”, ou “espanhóis”. A União vive e sempre viveu da diversidade entre os seus países. Cada um chega lá com a sua história tantas vezes secular, a sua cultura, o seu desenvolvimento económico e social, os seus hábitos de vida. O segredo tem sido sempre, quando era a seis ou quando é a 27, encontrar um interesse comum que seja vantajoso para todos. Cada país tem de contribuir para o compromisso possível em cada momento, a partir dos seus interesses próprios e a partir da aceitação dos princípios e dos valores que definem constitucionalmente a União – esses sim, são intocáveis e deviam ser inegociáveis.

Acresce que António Costa passou os últimos quatro anos a acumular credibilidade em Bruxelas e junto das principais capitais europeias. Está agora em condições de a gastar. Foi conciliador quando era preciso. Por exemplo, teve um papel fundamental na negociação de um orçamento próprio para a zona euro, que ficou a meio caminho entre a total relutância de Berlim ou da Haia em considerar tal hipótese e a proposta de Paris de dotar, finalmente, a zona euro de um verdadeiro instrumento orçamental que é fundamental para qualquer união monetária. Nessa altura, negociou directamente com Mark Rutte a proposta que acabou por ser adoptada. Várias vezes fez a ponte entre Macron e Merkel cujo crescente distanciamento era evidente até à chegada desta crise. É por isso que pode ser exigente agora.

Esta crise não se compadece com meias medidas. Será, de qualquer modo, devastadora para as economias europeias. A questão não é de “solidariedade”, é de uma “resposta comum”. Para que uns não tenham de pagar um preço muitíssimo mais alto do que outros.

4. Nota final. Basta ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão para saber que o “unanimismo” é um risco que não corremos. A crítica aos principais responsáveis políticos e às suas decisões é constante. Concordamos com algumas, discordamos de outras, mas as coisas são mesmo assim num país livre e democrático. As referências elogiosas à forma como Portugal está a lidar com a pandemia sucedem-se na grande imprensa estrangeira, tentando encontrar explicações. Costuma faltar uma: a feliz conjugação de políticos competentes e responsáveis, com o indispensável sentido de estado, à frente das principais instituições pública, que percebem a necessidade do consenso, o que é completamente diferente de unanimismo.

Refiro-me, naturalmente, ao primeiro-ministro que, por vezes, parece que “levou a vida toda a preparar-se para este momento” (pedindo a frase emprestada a uma amiga); ao Presidente, que encontrou o seu lugar e cuja pedagogia tem sido crucial; ao líder da Oposição, que entendeu perfeitamente o seu papel, prestando um inestimável serviço ao seu país; ao Presidente da Assembleia da República, com uma longa vida ao serviço da democracia e da liberdade, condição essencial para preservar o papel central do Parlamento no sistema político. Podia acrescentar o ministro das Finanças, no seu cargo absolutamente crítico de presidente do Eurogrupo. E até poderia dizer com inteira justiça que, apesar de tão criticada no anterior Governo, percebemos hoje por que razão Marta Temido se manteve no actual.»
(Teresa de Sousa, Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 07:30)

Como sempre, não resisti a trazer para aqui mais uma, para mim magistral, 'aula' de Teresa de Sousa! Pela sua pena, compreender a Europa que vamos tendo e até aquilo a que Marcelo se recusa a considerar como 'milagre' e que passa pela prodigiosa resposta de um povo e de um governo de um país pequeno e pobre, à maior crise global desde a II Grande Guerra, torna-se mais fácil para quem avance para os seus textos de alma e coração limpos, sem preconceitos ou tabus...

Felizes dos que lavam as mãos e o espírito com sabão azul!...

Leoninamente,
Até à próxima

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