Primeiro, há que ganhar a quarentena
Não haveria pior para nós, ainda por cima com a dependência do turismo de que padece o nosso PIB, do que uma quarentena mal feita.
«Às vezes o cronista pode repetir-se, só que em mais bruto. Deve fazê-lo, sobretudo se a vontade de dizer coisas novas se der apenas por desfastio e redundar em disparate. E nós não podemos ser um país cata-vento no qual se diz a 31 de Março que Abril será o mês mais duro, e a menos de metade de Abril andar a querer mais falar de como acabar com a quarentena do que de a ajudar as pessoas a cumpri-la bem e a protegê-las o melhor possível contra as consequências dela.
Nos últimos dias tenho visto, no debate português e internacional, liberais preocupados com o classismo da quarentena e marxistas preocupados com o funcionamento normal do capitalismo. Tenho visto anti-euristas daqueles que achavam que qualquer embate económico valia a pena, em nome da soberania, agora acharem que já é demais o embate económico que levamos para assegurar a sobrevivência das pessoas sem a qual não sobra soberania alguma. Tenho visto austeritários que defenderam a contracção de rendimentos interna, e intencional, preocupados com uma contracção de rendimentos em nome do combate à pandemia. Tenho visto aqueles que gostam de apelar ao heroísmo do “também sobrevivemos à guerra e à fome” acharem que esta quarentena é de uma incomparável dureza. E claro, tenho visto aqueles que sempre foram da classe média e média-alta explicar aos que viemos da classe baixa como o que beneficiaria agora a classe baixa seria “voltarmos ao normal” só que com uma infecção mortal ainda não controlada nas ruas. Seria interessante ver todas estas mudanças de opinião, se elas não estivessem predicadas em fazer-nos despender preciosa largura de banda agora com um debate que não salva vidas nem beneficia a economia neste momento nem no futuro. E entretanto perdeu-se o tempo que se deveria ter ganhado a explicar como a) podemos levar comida a casa das pessoas; b) fazer arranjos nas casas desconfortáveis; c) dar apoio financeiro directo a quem agora não tem nenhum; d) arranjar casas-abrigo para quem é vítima de violência doméstica; e) aumentar o alcance dos serviços de saúde mental. Pelo menos isto. Ainda é altura de ajudar as pessoas a fazer uma boa quarentena, e não baralhar a mensagem de que a quarentena ainda é a melhor resposta que temos por estas semanas, em nome da saúde pública (primeiro) mas da economia também.
Havemos certamente de falar de reabrir a economia, e em Portugal possivelmente mais cedo do que noutros países (mas nunca antes de vermos o que acontece em Espanha e em Itália, que são neste caso os exemplos mais importantes para nós). Mas não haveria pior para nós, ainda por cima com a dependência do turismo de que padece o nosso PIB, do que uma quarentena mal feita, perdendo força a meio, seguida por um descontrole das contaminações.
Nos EUA, dois think thanks daqueles de vários milhões de dólares e muitos especialistas a tempo inteiro, de esquerda e de direita, desenharam planos de reabertura da economia. O jornalista Ezra Klein resume-os no site vox.com e vale a pena dar uma olhada: os planos são péssimos ou dependem da implantação de um estado de cibervigilância inviável por agora, e ainda bem. O prémio Nobel da economia Paul Romer apresenta outra solução: testar toda a população nacional a cada catorze dias, identificar e isolar temporariamente os positivos, e repetir até necessário. Isso significaria 22 milhões de testes por dia nos EUA, e 700 mil por dia em Portugal — muito longe da capacidade actual.
Em Portugal temos uma opção adicional: a supressão, tanto quanto possível, da infecção até números residuais, seguida de medidas cautelares e do prolongamento de algumas restrições de movimento. Isto permitiria reabrir a economia gradualmente, mas seguramente e sem retrocessos. Para lá chegarmos temos de ter indicadores de descida do número total de infectados e de poder observar o que acontece com a reabertura de Espanha e Itália. Nada disso chegará antes de Maio.
Este é provavelmente o momento em que o meu interlocutor imaginário lança a objecção: então e a imunidade de grupo? Não sabemos. Oxalá funcione. Mas não sabemos se funciona muito tempo nem como responde a mutações do vírus.
Mesmo que desse para arriscar, a imunidade de grupo dependeria de deixarmos infectar 80% da população. Isso em Portugal são oito milhões. Com uma letalidade (optimista!) de um por cento, são oitenta mil mortos, dos quais talvez 65 mil poderiam sobreviver sem essa escolha necessariamente política. É mais do que cabe em qualquer estádio de futebol em Portugal. Foi impossível no Reino Unido, será mais impossível aqui.
Na ausência de uma vacina — que só virá lá longe —, de um tratamento eficaz — que não sabemos se virá —, ou de um teste barato e universalmente disponível, que talvez possa chegar daqui a uns meses e ajudar, por exemplo, a salvar o sector turístico, Portugal tem uma hipótese ao seu alcance. Diminuir tanto quanto possível o número total de infectados, ajudando as pessoas a fazer uma boa quarentena. É disto que deveríamos estar a falar.»
(Rui Tavares, historiador e fundador do Livre,Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 05:50)
Na ausência de uma vacina — que só virá lá longe —, de um tratamento eficaz — que não sabemos se virá —, ou de um teste barato e universalmente disponível, que talvez possa chegar daqui a uns meses e ajudar, por exemplo, a salvar o sector turístico, Portugal tem uma hipótese ao seu alcance. Diminuir tanto quanto possível o número total de infectados, ajudando as pessoas a fazer uma boa quarentena. É disto que deveríamos estar a falar.»
(Rui Tavares, historiador e fundador do Livre,Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 05:50)
Sim,"é disto que deveríamos estar a falar"! Todos nós. Pese embora a democracia implique sempre a coexistência 'pacífica' com "liberais" preocupados com o classismo da quarentena e "marxistas" preocupados com o funcionamento normal do capitalismo, para além dos "anti-euristas", dos "austeritários", dos "heróis", dos "achistas" e de todos aqueles para quem "pimenta no rabo dos outros é refresco"! Temos de viver com todos e com toda a força da razão será disto que continuaremos a falar, apesar de tudo e para bem de todos, até desses que sempre hão-de dizer mal, até de si próprios!...
Aqui do meu canto, subscrevo a opinião lúcida e corajosa de Rui Tavares. Que ninguém tenha pressa nem vacile, agora que o pior parece ultrapassado...
A gente vai mesmo continuar!!!...
Leoninamente,
Até à próxima
Amigos...
ResponderEliminarGraças a Deus "ainda vivo" e com a relativa saúde que me permitem os 77...
Quero desejar-vos a todos e vossas famílias boa saúde...e muita resiliência...
Vamos ter que redobrar os cuidados...
Mas "havemos de levar de vencida" este maldito vírus...
Abraço para todos os "companheiros de luta..."
SL
Abraço amigo Álamo e cá "vamos no mesmo barco..."
Muito obrigado Amigo Maximino Martins. Muito contente por sabê-lo bem. Que tenha passado uma quadra pascal feliz com todos os seus, dentro das condicionantes que todos conhecemos. Que tudo continue bem com o Amigo e cá vamos, exactamente sempre no "mesmo barco", porque a vida e a experiência acumulada, felizmente, nos ensinaram os melhores caminhos...
EliminarUm abraço grande e SL