domingo, 26 de abril de 2020

Afinal, eu não sou o único!...


Sempre
O Presidente da República fez o seu melhor discurso de sempre. Encontrou as palavras exactas para dizer porque estava ali, porque tinha de estar, porque era indispensável que estivesse ali

«1. Por vezes, raras, as emoções afectam o distanciamento e a racionalidade indispensáveis a quem exerce a minha profissão. Hoje, enquanto escrevia esta crónica, ainda era esse o meu estado de espírito. Acabara de assistir pela televisão à celebração do 46.º aniversário do 25 de Abril na Assembleia da República. Uma vida. Já não me lembro de ter sentido tanta felicidade perante uma cerimónia a que assistimos todos os anos. Talvez a tivesse sentido nos primeiros anos ainda mais do que hoje. Mas hoje senti-a com orgulho e com um enorme sentimento de alívio. O que teria sido se tivesse de passar este dia sem poder celebrar a data que nos restituiu a todos a liberdade — os que a viveram, como eu, e os que apenas a conhecem nas imagens, nos relatos e na experiência transmitida —, sem a possibilidade de assistir a uma cerimónia que não perdeu um milímetro da sua dignidade e da sua beleza essencial e que nos encheu o coração?

Os representantes que elegemos cumpriram o seu dever. O Presidente da República fez o seu melhor discurso de sempre. Encontrou as palavras exactas para dizer porque estava ali, porque tinha de estar, porque era indispensável que estivesse ali. Porque não hesitou um segundo a decidir que hoje era ali o único lugar onde deveria estar. Cumpriu a missão que tão bem tem desempenhado nesta tremenda crise: fazer pedagogia. Mas fê-lo de forma iluminada e brilhante. Para quem o ouviu, não terão ficado grandes dúvidas sobre as razões pelas quais o Parlamento devia abrir as suas portas para celebrar o 25 de Abril. Depois de uma polémica em torno das celebrações tão exaustiva e, por vezes, tão negativa, foi um bálsamo.

2. Ouvi, como faço sempre, os discursos que detesto e aqueles com que mais facilmente me identifico. Já escutei discursos notáveis de representantes de partidos nos quais nunca votarei. Já ouvi discursos medíocres de outros em cujo partido votaria mais facilmente. Numa democracia liberal como é a nossa, ninguém é proprietário do 25 de Abril. Ouvi insistentemente este argumento por parte dos que criticaram a realização da cerimónia. Sempre me irritou a forma como alguns capitães de Abril se sentiam no direito de nos vir dizer, todos os anos, que tinham feito o 25 de Abril, para isto e não para aquilo. Ou os dirigentes do PCP invocarem a autoridade adquirida na resistência para nos dizer qual era o único 25 de Abril possível. Nunca houve um 25 de Abril possível. Houve naquela madrugada, que os versos de Sofia imortalizaram, a restituição da liberdade aos portugueses que viviam sem ela há 48 anos, para fazerem dela o que quisessem.

O golpe militar poderia ter falhado, abrindo certamente as portas a uma repressão sangrenta. Não falhou. O 25 de Novembro podia ter sido resolvido ao contrário, dando o poder às forças políticas que queriam substituir uma ditadura por outra, ainda que de sinal contrário. Podíamos não ter tido Salgueiro Maia ou Mário Soares — o nosso grande ausente, porque foi o líder político que melhor e mais genuinamente encarnou essa ideia essencial da liberdade. Vivemos hoje numa democracia liberal madura e resistente aos ventos contrários que sopram em toda a parte contra o Estado de direito e a liberdade de cada um de nós. Estamos integrados numa Europa cujas democracias conseguem estar entre as mais prósperas e socialmente mais justas do mundo. Conseguimos responder a esta crise inesperada que virou o nosso mundo quotidiano ao contrário como o país livre e desenvolvido que somos.

Antes da crise, tínhamos o “pior SNS do mundo”. Hoje, temos o “melhor SNS do mundo”. Como é possível? Porque, antes da crise, já era um dos melhores do mundo, ocupando um lugar honroso na hierarquia dos serviços nacionais de saúde da União Europeia e da OCDE. Vimos outros, classificados nos primeiros lugares do pódio mundial, com maiores dificuldades para enfrentar a pandemia. Se não fosse assim, celebraríamos da mesma maneira a liberdade — porque ela está na origem de todas as outras coisas —, mas assim ainda é melhor.

3. Não há donos do 25 de Abril. Mas há diferenças, que podem ser profundas, na maneira como o sentimos e como o vivemos. É natural. Faz parte da experiência de cada um de nós, da vida que vivemos, da idade que temos. Nem sempre foi fácil explicar aos meus filhos, quando ainda eram pequenos, como era a vida em Portugal durante a ditadura. Ainda me lembro de me perguntarem, entre o espanto e a incredulidade, porque é que a polícia andava atrás de mim.

Foi quando os levei pela primeira vez ao ponto exacto da fronteira que atravessei a salto e à pequena vila espanhola onde esperei, no sítio combinado, o casal corajoso e solidário que me levara à fronteira e me iria deixar em Salamanca. Mostrei-lhes a bússola e o mapa que um grande amigo meu me entregou para que não me perdesse nos campos entre a fronteira e a aldeia. Como ele dizia a rir, para “não vir parar ao Rossio”. De acordo com um estudo demográfico recente, pela primeira vez são mais os portugueses que já viveram toda a vida em democracia do que os que ainda nasceram e viveram em ditadura. É por isso que a memória é tão importante. É por isso que as celebrações não podem nunca, por nenhuma razão, ser interrompidas.

Estava em Paris nesse dia magnífico, a viver um exílio que não tinha nada de dramático ou de particularmente penoso, a não ser numa coisa — a única que verdadeiramente o tornava insuportável. Não saber quando poderia regressar ao meu país, à minha família, à minha cidade, aos meus amigos, ao mar. De resto, percorrer as belas avenidas de Paris, mesmo sem dinheiro nos bolsos, era a mais fantástica das sensações. Uma esplanada e um grand-crème, jambon-beurre eram, naquele tempo, a absoluta plenitude. É preciso compreender, para além dos nossos princípios democráticos ou das nossas ideias abstractas, o que é o 25 de Abril para quem vivia “confinado” na apagada e vil tristeza da ditadura.

4. Na última Spectator, o título de um dos artigos (que nem sequer era particularmente interessante) despertou-me imediatamente a atenção. Rezava assim: “Churchill teria usado máscara?” Por causa do seu eterno charuto? Porque a sua personalidade era incompatível com a obediência a uma protecção recomendada à maioria dos outros mortais? Alguém imaginaria os deputados, os convidados, o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República ou o primeiro-ministro de máscara na sessão de hoje? E, no entanto, nenhum deles perdeu o direito a pedir às pessoas que as usem nos supermercados ou nos transportes públicos. Os trabalhadores dos supermercados vão todos os dias trabalhar porque o serviço que prestam é essencial. Fechar o Parlamento seria considerar que não cumpre também uma função essencial. Como tem cumprido desde o confinamento. Para aprovar leis urgentes, fiscalizar o Governo, legitimar a decisão presidencial de decretar o estado de emergência. Em público e de portas abertas.

Esta súbita doença do “igualitarismo” que assaltou as mentes mais preclaras e liberais, argumentando com a igualdade, não de circunstância, mas como “estado natural”, ultrapassa a minha capacidade de compreensão. Mas, como já disse, esta é uma crónica feita também de emoções. Contrariando a regra geral.»

Abençoadas emoções que Teresa de Sousa ontem nos ofereceu, para remate de uma das comemorações do 25 de Abril que, também a mim, mais me terá sensibilizado.

Hei-de ler, reler e voltar a ler muitas vezes o último parágrafo deste seu assombroso texto...

Afinal, eu não sou o único!...

Leoninamente,
Até à próxima

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