As cidades mortas
As cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tempo, sem alegria, são cidades cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os animais.
«Em tempos difíceis, ouvem-se frases inesperadas e lêem-se pensamentos surpreendentes. Entre estes últimos, um dos mais espantosos diz respeito às cidades. Ao estado em que se encontram. Desertas! Silenciosas. Sem turistas. Sem movimento. Sem ruído. Sem buzinas. Sem poluição. Há quem diga explicitamente “Ai que bom! Deveria ser sempre assim”. Ou então “Assim é que a cidade é bonita e dá vontade de viver!”. Há quem pense e quem diga a sério que as cidades não deveriam receber mais turistas (pelo menos tantos…), nem cruzeiros (se fossem menos…), nem estrangeiros (a não ser os que se portam bem…). E também não deveria haver automóveis (a não ser os nossos…). Nem autocarros ou aviões por cima das cabeças. Há quem pense que o exemplo das cidades durante a epidemia deveria ser uma lição e levar as autoridades a fazer com que as cidades, depois, um dia, fossem mais ou menos o que são hoje: quase desertas. Ou com a beleza do silêncio dos cemitérios.
Tanto disparate! Sabe-se que a morte pode ser fotogénica e que a dor dos outros pode ser atraente. Mas daí a estabelecer a beleza destas cidades mortas vai um passo que roça a loucura ou a tolice. Pode haver sossego em cidades silenciosas e ruas vazias, com comércios fechados e sem passeantes? Pode haver paz em cidades sem vida, sem cheiro, sem ruído de fundo e sem agitação? Pode haver alegria em cidades sem urbano, cidades sem conversa e sem intriga, cidades sem correrias, sem atrasos, sem reuniões, sem idas para o trabalho, sem escolas, sem crianças e sem sirenes de ambulâncias? Pode haver cidades sem polícias e ladrões?
As cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tempo, sem alegria, são cidades cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os animais. As cidades com vida são grandes criações humanas, quase obras de arte, mas sem dúvida obras de génios, do génio de planeadores e de génios de milhares de indivíduos e de milhões de decisões que, sem plano, convergem e criam. A cidade é um dos cumes da criação social. É na cidade que existe cultura, igualdade, democracia, discussão e tolerância. Sabemos que também pode haver crime, roubo, doença, acidente, mas tudo isso é nada comparado com a liberdade e a criação que a cidade nos dá. Nem com a alegria que nos proporciona. Até porque a cidade também é protecção e segurança.
O mistério, o encanto e a alegria da cidade foram analisados e cantados pelos melhores. Por Lewis Mumford que, apesar da sua visão crítica das cidades contemporâneas, realçou como poucos a ideia de que a cidade, mais do que matéria e engenharia, é obra de espírito. Por Italo Calvino que, melhor do que ninguém, mostrou que as cidades são como os sonhos, feitos de medos e de desejos. Por Santo Agostinho, que gravou as expressões Cidade de Deus e Cidade da Terra, com as quais quase resumiu a condição humana. Por Augusto Abelaira que, na Cidade das Flores, nos levou, há mais de cinquenta anos, a uma Lisboa disfarçada de Florença, onde sugeriu que a palavra e a arte acompanhavam os desejos de juventude e que política e amor podiam andar juntos. Por Jacques Le Goff que nos garantiu que, desde a Idade Média, foram as cidades que permitiram e criaram as ciências e as letras. E até por Alphonse Allais que escarnecia dos que vociferavam contra os problemas urbanos, recomendando-lhes que simplesmente deveriam construir as cidades nos campos!
Para Marco Polo e o Kublai Khan, segundo Calvino, havia pelo menos 55 tipos de cidades. É possível. Todas elas com ideia e espírito. Todas com história e vocação. Todas com um lugar no património da humanidade. E parece que não há duas cidades iguais. Nem sequer parecidas. Há Veneza, única. Atenas e Esparta. Cusco e Machu Picchu. Tróia, Cartago e Alexandria. Babilónia e Roma. Palmira, Constantinopla e Alepo. Foi nas cidades que se fizeram as universidades e as bibliotecas. Mas também as orquestras e os museus. Cada cidade é um resumo de vida e de história. Há nomes de cidades que nem precisam de ser ilustrados. A Cidade Proibida, da autoridade. A Cidade Aberta, da liberdade. A Cidade República e a Cidade Império. A Cidade de Arte. A Cidade Antiga. A Cidade Medieval. A Cidade Ideal, do Renascimento. A Cidade Industrial. A Cidade Luz. A Cidade do Vinho. Ou a Cidade ao lado das Serras. E as duas cidades das cenas no tempo da revolução francesa! Há cidades mágicas, invisíveis, felizes, operárias, financeiras e burguesas. O que não há são cidades mortas, cidades desertas, cidades cemitérios, cidades ruínas… Ou antes, não deveria haver. São contradições nos termos.
Um povo sem cidade é um povo triste. Ou atrasado. Ou conquistado. Ou escravo. O Imperador louco pegou fogo à cidade, Roma. Os deuses destruíram e castigaram as cidades de maus costumes, Sodoma, Gomorra e Pompeia. Quando fizeram campos de concentração na Alemanha, esvaziaram cidades. Quando sonharam com a reeducação de cidadãos na China, foram estes enviados para o campo. Quando pretenderam castigar os adversários e os homens livres na Rússia, foram deslocados para os campos. Quando os tiranos desejaram consolidar o seu poder no Camboja, tiraram milhões de pessoas das cidades. Napoleão e Hitler queriam as cidades, quiseram Moscovo, em Moscovo esbarraram e a guerra perderam. Os ditadores não se sentem bem nas cidades. Nem gostam de quem vive nas cidades, porque a liberdade é citadina. E porque cidadania vem de cidade.
As cidades são antros de crime e pecado. Têm noites malvadas e esquinas fatais. Têm escadinhas de droga e de assalto. Têm becos de má fama e calçadas de reputação duvidosa. Têm tango e fado. Têm esplanadas de espiões e mirones. Têm especuladores e açambarcadores. Têm criança abandonada, mulher explorada, homem bandido, velho adoentado e jovem batido. Têm minorias oprimidas e máfias tribais. As cidades têm crime e doença, têm violência e drama, mas é nas cidades que encontramos o sentido criativo, a invenção e o progresso. As cidades têm exploração e despotismo, mas é nas cidades que temos liberdade. Aliás, a liberdade é urbana.»
(António Barreto, sociólogo, Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 07:47)
(António Barreto, sociólogo, Opinião Coronavírus, in Público, hoje às 07:47)
Havemos de voltar à liberdade das cidades!...
Leoninamente,
Até à próxima
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