Mathieu vai deixar saudades
«Num momento de balanço do enorme futebolista que foi, guardemos a imagem de um jogador implacável nos duelos individuais; perfeito a gerir o espaço e o tempo; sumptuoso a sair com a bola dominada, dando início ao processo de construção. Jérémy Mathieu foi um central de equipa grande, capaz de distinguir a diferença entre muito e bom; que foi descobrindo soluções para se apetrechar cada vez melhor, de modo a desarmar quem lhe aparecia pela frente. Se craques definitivos como Cristiano, Messi, Benzema, Suárez ou Jonas o abordavam suportados na confiança de mil argumentos técnicos para o passar, ele contrapunha com outros tantos para metê-los no bolso como se fossem crianças atrevidas mas inofensivas. Nem mais, nem menos.
JM provou que a criatividade não é exclusivo de quem tem a bola, ataca e se expressa pela via do engano. Não tinha a habilidade dos grandes artistas mas sempre soube interpretar intenções alheias e agir com eficácia absoluta para travá-los. Fazê-lo com tanta segurança e acerto constituiu prova de um talento singular. Antecipar o que vai acontecer e jogar simples nos momentos mais delicados é um segredo que só os mais extraordinários defensores conseguem dominar.
Para sempre fica a exibição assombrosa na final da Taça de Portugal da época passada, ganha ao FC Porto no desempate por pontapés de penálti. Foram duas horas de jogo em que o francês foi rei e senhor da batalha, com acção esmagadora e continuada sobre qualquer adversário que lhe surgisse pela frente; com intervenções supersónicas sobre os mais rápidos; inteligente e contido face aos mais habilidosos; robusto e impressionante com os mais atléticos; superior, porque chegava primeiro ou recuperava depois, pelo chão e pelo ar, numa área e na outra.
JM, que passou uma vida inteira a pisar palcos sagrados, ao serviço de Sochaux, Toulouse, Valencia, Barcelona, Sporting e selecção francesa, acedeu ao patamar dos mais extraordinários defesas estrangeiros que alguma vez pisaram relvados portugueses – a par de Mozer, Ricardo Gomes, Aloísio e André Cruz, para só falar em alguns fenómenos defensivos da história. Extinguiu-se, assim, de um dia para o outro, longe dos nossos olhos, a chama intensa de um magistral jogador, conjugação perfeita de eficácia e talento; de sonho e memória; de sobriedade e exuberância. Parte um homem discreto, silencioso e raro, com qualidade majestosa que, sempre com classe superior, soube adaptar-se às contingências da idade e das mais variadas circunstâncias que encontrou no trajecto – maduro na juventude e apaixonado na veterania; surpreendente pelo absoluto domínio táctico do jogo nos primeiros passos e por agilidade, velocidade e explosão no último troço da carreira.
O francês não concedeu aos adeptos o privilégio de uma despedida lenta e prolongada, que alimentasse a nostalgia antecipada do adeus difícil a um dos melhores centrais de sempre em Portugal. Foi tudo repentino e violento. JM ganhou direito à eternidade e vai deixar muitas saudades. Alimentou a dúvida sobre o futuro imediato mas desfê-la, longe da multidão que o respeita e até venera, num treino do qual saiu de muletas e com o joelho esquerdo em mau estado. Aos 36 anos, JM desafiou os limites para lá do razoável num jogador de elite, revelando a paixão, o orgulho e a coragem de levar a luta ao máximo das suas possibilidades. O choque é sempre vão porque, mais tarde ou mais cedo, os limites levam a melhor sobre o homem. Agora que chegou ao fim da linha, não faltará quem lastime e reze para que não parta já. Os deuses vão ouvir as preces, tenderão até em concordar com o pedido, mas acabarão por se resignar à evidência de que nem eles têm poder para interferir em desígnios ainda maiores.
Prova de qualidade superior, o francês esteve no Barcelona três épocas, nas quais efectuou um total de 91 jogos
Na final da Taça de Portugal 2018/19 assinou exibição portentosa. Um jogo de compêndio para qualquer defesa-central
No momento de deixar o Sporting (e o futebol), os companheiros reagiram com a grandeza que o momento impunha.»
(Rui Dias, De Pé para Pé, in Record, hoje às 03:59)
Depois de que foi dito pela pena sublime de Rui Dias, espero que ele me permita associar-me à merecida homenagem que entendeu prestar a Jérémy Mathieu.
Mathieu vai deixar saudades. Muitas!...
Leoninamente,
Até à próxima
Tudo dito, de forma justa e meritória.
ResponderEliminarReconhecidos e gratos, pela categoria, profissionalismo e exemplaridade do carácter.
Muito obrigado, Monsier Mathieu.
Fazes parte da Família Leonina.
SL