«Quando apareceu a treinar na I Divisão, Jorge Jesus era conhecido como o "Cruijff da Reboleira". Era a forma depreciativa que o futebol nacional encontrava para ridicularizar um treinador de uma equipa pequena com manias de grandeza, porque lhe dava a alcunha do líder do grande Barcelona desse tempo mas juntava-lhe a origem suburbana para o diminuir. Passaram 20 anos e a maior parte dos que gozavam com Jesus nessa altura ainda acham que o decalque do cruijffismo passava pela tentação de colocar o Felgueiras a jogar em 3x4x3 ou que a descida de divisão naquele ano e a preferência posterior pelo 4x4x2 pressupunham o abandono do modelo do "Fininho". Estão enganados. O futebol de Jesus continua a beber muita da sua inspiração na revolução de Cruijff porque é lá que vai buscar o seu conceito fundamental: posicionamento que permita superioridade numérica na zona da bola. Como se viu na vitória do Sporting frente ao FC Porto, anteontem, por exemplo.
Cruijff era o mentor em campo daquilo a que se chamou o "futebol total", inventado por Stefan Kovacs e aperfeiçoado por Rinus Michels. Ora, o "futebol total" nunca se definiu através de um esquema táctico. Podia ser o 4x3x3 da Holanda e do Ajax da década de 70, o 3x4x3 do Barcelona do final dos anos 80 ou o 4x6x0 da Espanha de 2010 e 2012. Há quem diga até que era o 4x2x4 da Hungria dos anos 50... Pouco importa. O que mais interessa ali é a predisposição de todas essas equipas para viverem e mudarem dentro desses esquemas, de forma a criarem situações de superioridade numérica onde mais interessa. Isso, por muito que os gozões de 1995 ainda não o tenham compreendido, treina-se. E não me espantou que a primeira vez que falei com Jesus, num jantar de aniversário do Record, era ele treinador do Felgueiras e eu comentador dos jogos da Liga espanhola na TVI, tenha sido sobre os treinos de Johann Cruijff, a que ambos tínhamos assistido em Barcelona, ainda que em alturas diferentes: ele quando lá estagiou e eu quando por lá passei uma semana em reportagem ao serviço do Expresso. O que interessava ao Cruijff da Reboleira não eram esquemas tácticos, não era a obsessão do verdadeiro Cruijff pelos extremos puros, pela largura das suas equipas no campo, mas sim a forma como ele treinava para garantir a progressão em triangulações e as situações de superioridade numérica na zona da bola.
Ao contrário do Cruijff verdadeiro, o da Reboleira já mudou de esquema táctico predilecto muitas vezes. Mas, se Cruijff transformou o 4x3x3 em 3x4x3 porque achou que precisava de ter mais gente no meio-campo e não tinha de sacrificar sempre quatro homens atrás contra adversários que só atacavam com um ou dois elementos, Jesus também compreendeu a importância da criação de desequilíbrios favoráveis. As contas são fáceis de fazer. Todas as equipas começam com 11 em campo e para se ter mais gente numa determinada área é preciso ter menos noutras - o segredo é ter mais gente onde importa e menos onde o adversário tem menos hipóteses de fazer valer a sua superioridade parcial. Foi por isso que, sendo adepto do 4x4x2, Jesus abordou o jogo em Braga em 4x3x3, com Aquilani a fazer de segundo avançado mas muito mais predisposto a baixar para a zona do meio-campo - onde o Sp. Braga tinha apenas dois homens - e assegurar ali um desequilíbrio favorável ao Sporting. É por isso que os extremos de Jesus procuram sempre o espaço interior, de forma a assegurarem superioridade colectiva naquela zona, mesmo sacrificando a largura, que é uma das ideias base do futebol de Lopetegui, por exemplo. O jogo em Braga, o Sporting perdeu-o, após 120 minutos muito divididos, com superioridade ora de uma ora de outra equipa. Contra o FC Porto ganhou com clareza, tal como já tinha ganho os três clássicos da temporada frente ao Benfica. E sempre com a mesma filosofia - a da criação de desequilíbrios favoráveis.
Foi essa a história do Sporting--FC Porto. Superioridade dos leões no corredor central, onde tinham William, um Adrien de movimentos amplos, João Mário a sair da direita e Ruiz a baixar do ataque contra Danilo e Rúben Neves muito fixos, aos quais só se juntava Herrera. A aposta do FC Porto era na largura, com Brahimi e Corona sempre abertos sem bola, ainda que procurassem o corredor central quando a tinham nos pés. Os dragões criavam perigo se conseguiam variar rapidamente o flanco no ataque, porque o Sporting jogava estreito e as costas do lateral do flanco oposto eram muito apetecíveis, mas raramente conseguiam tornar essa superioridade efectiva - era preciso fazer chegar lá a bola. A supremacia do Sporting fundou-se na superioridade no local onde a bola andava mais tempo: o corredor central. Chegou para ganhar o jogo com a clareza de um 2-0 ao qual se somaram mais duas bolas nos ferros. Pode não chegar para ganhar a Liga, tal como não chegou para ganhar em Braga, na Taça de Portugal. Mas nem isso fará com que a ideia não seja boa.»
(António Tadeia, Opinião, in DN)
A este serôdio apaixonado pelos segredos do futebol, a quem uma profissão exigente e de castrante exclusão afastou a possibilidade de os descobrir no tempo certo, nunca perde a oportunidade de desvendar os mundos que se viu obrigado a ver passar ao longe. Esta crónica de António Tadeia, que há muito me habituei a respeitar, apanhou-me tão de surpresa quanto o deleite com que a li e reli e voltei a ler e a reler...
E decidi, sob pena de me apelidarem de chato, trazê-la para o meu cantinho, na convicção de que outros adeptos sportinguistas e não só, olhem para o futebol como eu e não percam uma vírgula daquilo que AT escreveu.
Vibrei com a contratação do "Cruijff da Reboleira" pelo Sporting Clube de Portugal e continuo a pensar que Bruno de Carvalho poderá muito bem com essa decisão, ter-se arriscado a deixar o seu nome para sempre ligado à História do Sporting. Exactamente porque Jorge Jesus é diferente de todos os técnicos que conheço, dentro e fora de portas. António Tadeia consegue na sua crónica, quase cientificamente, explicar o porquê daquilo que eu, intuitivamente, sempre soube: Jorge Jesus ainda estará por descobrir completamente!...
No final da época, sem olhar a resultados, será bom renovar por mais dois anos!...
Leoninamente,
Até à próxima
O Tadeia no sábado na RTP3, entre a conferência do Lopetegui e a do Jesus, já tinha dito grande parte do que aqui escreve. Este artigo está é mais completo... Sem dúvida que temos uma superioridade na zona da bola, e no banco, a comandar a equipa.
ResponderEliminarInteressante, será este JJ diferente daquele que esteve no Benfica nos últimos 6 anos? É que nessa fase ele era para muitos um treinador fanfarrão com a mania das grandezas. Para muitos comentadores e sportinguistas que agora "descobriram" JJ...
ResponderEliminarNão! se fosse diferente, não teria sido contratado, não é verdade?
EliminarCaríssimo Álamo:
ResponderEliminarComeço por avisar e pedir desculpa já que este meu comentário poderá ofender alguém mais fundamentalista.
Vejo, com agrado, que o caríssimo Álamo gosta de reproduzir comentários de valor.
Também sou da era dessa abertura de espírito.
Aliás, sou de um tempo em que se ía ao futebol com amigos de outros Clubes, nos sentávamos lado a lado, se trocavam ideias, e no fim se iam comer uns pregos ao Edmundo (passe a publicidade).
Sou de um tempo em que não se gabavam jogadores pela capacidade física mas técnica. Sou, enfim, do tempo do futebol bonito, do tempo em que, mais que as equipas, contavam os jogadores.
Sou do tempo em que o futebol era bonito, e não se elogiava a atitude defensiva.
Soui do tempo em que o objectivo era, como dizia o saudoso Malcolm Allison, o que contava era marcar mais um golo que o adversário (e quero lá saber se ele dava os treinos a beber champagne, até achava graça).
Gosto, desde muito pequeno, por influência da minha Família, e principalmente do meu saudoso Pai, de desporto no total.
Como o Álamo sabe,joguei vários.
Por isso, o futebol para mim é feito de memórias, mais do que de jogos, de jogadores e de jogadas. Jogadas que podem ser uma tacada do Phil Mickelson de detrás de uma árvore em Augusta, com a bola a voar duzentos metros até ao green, a um passe de Dan Carter para trás por baixo do sovaco a dar ensaio dos All Blacks, a um cesto do Michael Jordan com ele a fintar dois adversários suspenso no ar, o Butler a cortar um touchdown no último segundo do Superbowl dando a vitória aos meeus queridos Patriots, etc, etc.
Também me lembro de uma grande chapelada do grande Eusébio ao grande Damas em que este, já batido, se lança para trás e envia a bola para canto. O grande Eusébio deu a mão ao grande Damas, levantou-o do chão e cumprimentou-o, que coisa tão estranha.
Podia estar aqui a desfiar memórias destas sem fim.
Tudo isto a propósito de gostar de jogadores e jogadas.
Há jornalistas e jornaleiros. Gostava muito de ler e ouvir Rui Tovar, como agora gosto de ler e ouvir o seu filho.
Gosto muito de ler, no MF total, Luís Mateus. Não sei qual o clube dele, desconfio que seja o Sport Lisboa e Benfica (sim, esse clube de grandes adeptos, não os do "carnide", os barrascos).
Mas li e recomendo que leia e, se puder, aqui publique, o artigo dele de hoje no MF Total. O espaço dele chama-se "Era capaz de viver na Bombonera", e o delicioso artigo sobre a memória do Futebol e de Futebolistas tem por nome "Bryan Ruiz (ou como não podem deixar que a História vos engane)".
Identifico-me totalmente com o artigo e os comentários dele.
Vale a pena ler. Como valia a pena ir a um estádi pra ver Futebol e Futebolistas como o Maradona, ou o Rui Costa, ou o Eusébio, ou o Damas.
Como vale a pena ir a um Estádio, só para ver o Bryan.
Um grande Abraço,desculpe o espaço que tomei,
Sempre seu amigo,
José Lopes
Amigo José Lopes, o meu sentido e reconhecido obrigado. O seu comentário é o paradigma absoluto daquilo que sempre entendi deverem ser os comentários: um complemento do texto em apreço, uma contribuição inestimável para o melhoramento da ideia do autor. Infelizmente sou obrigado a coexistir por aqui com o que de mais baixo a sociedade produz. Infelizmente, e digo-o com um aperto que talvez não saiba exprimir, esses "aguaceiros" surgem invariavelmente de adeptos "benfas", ainda que por vezes me sinta compensado com opiniões tão elevadas como a sua, vinda de muitos benfiquistas que mesmo virtualmente aprendi a ter como amigos! É o mundo que nos é oferecido e pouco ou nada haverá a fazer, senão proseguir o caminho que entendemos como melhor e mais digno!...
EliminarUm grande abraço de amizade, na certeza de que as suas palavras nunca pecarão por excesso.