MARACANAZO DOS TEMPOS MODERNOS
«São muitos os episódios à volta do dia em que a confiança insolente de um povo foi confrontada com aquilo que o antropólogo Roberto DaMatta considerou "a maior tragédia da história contemporânea do Brasil". A lenda do Mundial de 1950 tem um enorme protagonista: Obdulio Varela, o capitão que, contra a evidência de um circo romano em que os uruguaios seriam as vítimas, criou uma contracorrente emocional decisiva. Diz-se que, em plena cabina, pegou no jornal ‘O Mundo’ e, depois de ver a capa, lhe urinou em cima. Havia um motivo: a foto da selecção canarinha era gigante e enquadrava a frase "Estes são os campeões mundiais". Quando as equipas se formaram para o registo da praxe, ‘El Negro Jefe’ ficou furioso com os repórteres fotográficos que foram, quase todos, para o lado errado da história. Gritou ofendido: "Deixem esses macacos em paz e venham para aqui. Tirem fotografias, sim, mas aos campeões, que vamos ser nós."
O sucesso de Portugal, que não precisou de um chefe como Obdulio, começou quando Fernando Santos fez os seus soldados acreditarem nas ideias, no estilo e nas prioridades do futebol que escolheu. Pacho Maturana, o ‘Sacchi dos Trópicos’, afirmou que "temos de morrer sem nos atraiçoarmos", alertando para a necessidade de os treinadores não abdicarem do que pensam face a pressões ou fracassos iminentes. FS resistiu à mudança mas acabou por moldar algumas linhas orientadoras do guião sem beliscar as suas mais íntimas convicções. Chama-se a isso bom senso.
Pouco importa agora incidir a reflexão da vitória no Euro se o futebol de Portugal devia ter calibrado melhor ordem e entusiasmo; disciplina e liberdade; luta e criatividade; responsabilidade e irreverência. Se, no fundo, o talento não permitia tomar decisões mais ousadas quando confrontado com ter ou não ter bola; jogar com esperança ou receio; fazer do jogo uma festa ou uma guerra. FS definiu um rumo e todos, incluindo os principais artistas, se comprometeram com as suas opções. A Selecção foi uma equipa temível, por ter coordenado todos os elementos que influenciam o colectivo e pela cumplicidade entre comando e comandados, prova de que só acreditando no líder o treinador consegue transmitir o que pretende e os jogadores aceitam o rumo que lhes é dado.
FS resolveu alguns problemas corrigindo o primeiro instinto: Renato, Adrien, Cédric e Fonte acabaram titulares; o 4x3x3 foi mais utilizado do que seria de esperar e Éder pôde aplicar o tiro mais importante da história do futebol português. O resto foi não dar crédito às imbecilidades de ex-jogadores e comentadores franceses; sorrir perante as certezas irreflectidas do senhor que tira macacos do nariz e põe na boca; venerar o apoio dos emigrantes e não cometer erros. Nunca cometer erros. Acima de tudo, Portugal foi uma equipa competente, que nunca ofereceu, por exemplo, penáltis como o de Schweinsteiger, muito menos reeditou as falhas infantis de Kimmish e Neuer que empurraram a França para a final. O futebol da Selecção não deslumbrou. Mas a paixão, enquadrada por estratégia bem assimilada, também pode ser um espectáculo deslumbrante.
No Stade de France, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, cumprimentou sorridente a equipa portuguesa, deu os "parabéns" a FS e não manifestou sinais de surpresa no momento da festa que silenciou Paris. Já Jules Rimet, líder da entidade máxima do futebol em 1950, grato pela organização do Mundial canarinho, terá afirmado num círculo de amigos: "Estava tudo previsto naquela tarde, menos a vitória do Uruguai." Lá tinha as suas razões: entregou a Taça a Obdulio Varela na cabina porque, no relvado, não houve condições físicas e emocionais para fazê-lo. Em Saint-Denis não se chegou a esse extremo. O espírito do Maracanazo esteve lá, é certo. Os tempos é que são outros.
Rui Patrício foi perfeito
A Selecção Nacional não podia ter jogado o Europeu em melhores mãos
Rui Patrício foi mais do que um guarda-redes que salvou a equipa em momentos de aperto, incluindo o penálti defendido com a Polónia. Na final sintetizou sete jogos perfeitos com três intervenções brilhantes e decisivas. Mas não só: no palco maior deu lição notável do que é estar na baliza, portentoso na confiança e na segurança reveladas em cada tomada de decisão. Foi, de longe, o melhor do Euro.
Pepe assinou um grande Euro
Iniciou o caminho como alvo mal escolhido pelo selecionador islandês
Pepe confirmou que é um enorme jogador mas só Lagerback seria capaz de associá-lo a Hollywood – para isso lá estavam CR7, Nani ou Quaresma, génios que nunca lhe passaram pelas mãos. Pepe mandou as brincadeiras de mau gosto para trás das costas e tratou de mostrar o que é: um dos mais extraordinários centrais do futebol actual e, também a uma larga distância, o melhor que pisou o grande palco.
Um titular para a próxima década
O B. Dortmund terá uma palavra a dizer na evolução de um grande jogador
Raphaël Guerreiro graduou-se no Euro’2016 como um lateral-esquerdo de expressão internacional. Jovem (22 anos), com uma curta carreira feita em clubes periféricos como Caen e Lorient, agigantou-se integrado em equipa com outras ambições como é a Selecção Nacional. A atacar é um extremo, a defender tem ainda algo para aperfeiçoar. O futebol português ganhou um titular para os próximos dez anos.»
«São muitos os episódios à volta do dia em que a confiança insolente de um povo foi confrontada com aquilo que o antropólogo Roberto DaMatta considerou "a maior tragédia da história contemporânea do Brasil". A lenda do Mundial de 1950 tem um enorme protagonista: Obdulio Varela, o capitão que, contra a evidência de um circo romano em que os uruguaios seriam as vítimas, criou uma contracorrente emocional decisiva. Diz-se que, em plena cabina, pegou no jornal ‘O Mundo’ e, depois de ver a capa, lhe urinou em cima. Havia um motivo: a foto da selecção canarinha era gigante e enquadrava a frase "Estes são os campeões mundiais". Quando as equipas se formaram para o registo da praxe, ‘El Negro Jefe’ ficou furioso com os repórteres fotográficos que foram, quase todos, para o lado errado da história. Gritou ofendido: "Deixem esses macacos em paz e venham para aqui. Tirem fotografias, sim, mas aos campeões, que vamos ser nós."
O sucesso de Portugal, que não precisou de um chefe como Obdulio, começou quando Fernando Santos fez os seus soldados acreditarem nas ideias, no estilo e nas prioridades do futebol que escolheu. Pacho Maturana, o ‘Sacchi dos Trópicos’, afirmou que "temos de morrer sem nos atraiçoarmos", alertando para a necessidade de os treinadores não abdicarem do que pensam face a pressões ou fracassos iminentes. FS resistiu à mudança mas acabou por moldar algumas linhas orientadoras do guião sem beliscar as suas mais íntimas convicções. Chama-se a isso bom senso.
Pouco importa agora incidir a reflexão da vitória no Euro se o futebol de Portugal devia ter calibrado melhor ordem e entusiasmo; disciplina e liberdade; luta e criatividade; responsabilidade e irreverência. Se, no fundo, o talento não permitia tomar decisões mais ousadas quando confrontado com ter ou não ter bola; jogar com esperança ou receio; fazer do jogo uma festa ou uma guerra. FS definiu um rumo e todos, incluindo os principais artistas, se comprometeram com as suas opções. A Selecção foi uma equipa temível, por ter coordenado todos os elementos que influenciam o colectivo e pela cumplicidade entre comando e comandados, prova de que só acreditando no líder o treinador consegue transmitir o que pretende e os jogadores aceitam o rumo que lhes é dado.
FS resolveu alguns problemas corrigindo o primeiro instinto: Renato, Adrien, Cédric e Fonte acabaram titulares; o 4x3x3 foi mais utilizado do que seria de esperar e Éder pôde aplicar o tiro mais importante da história do futebol português. O resto foi não dar crédito às imbecilidades de ex-jogadores e comentadores franceses; sorrir perante as certezas irreflectidas do senhor que tira macacos do nariz e põe na boca; venerar o apoio dos emigrantes e não cometer erros. Nunca cometer erros. Acima de tudo, Portugal foi uma equipa competente, que nunca ofereceu, por exemplo, penáltis como o de Schweinsteiger, muito menos reeditou as falhas infantis de Kimmish e Neuer que empurraram a França para a final. O futebol da Selecção não deslumbrou. Mas a paixão, enquadrada por estratégia bem assimilada, também pode ser um espectáculo deslumbrante.
No Stade de France, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, cumprimentou sorridente a equipa portuguesa, deu os "parabéns" a FS e não manifestou sinais de surpresa no momento da festa que silenciou Paris. Já Jules Rimet, líder da entidade máxima do futebol em 1950, grato pela organização do Mundial canarinho, terá afirmado num círculo de amigos: "Estava tudo previsto naquela tarde, menos a vitória do Uruguai." Lá tinha as suas razões: entregou a Taça a Obdulio Varela na cabina porque, no relvado, não houve condições físicas e emocionais para fazê-lo. Em Saint-Denis não se chegou a esse extremo. O espírito do Maracanazo esteve lá, é certo. Os tempos é que são outros.
Rui Patrício foi perfeito
A Selecção Nacional não podia ter jogado o Europeu em melhores mãos
Rui Patrício foi mais do que um guarda-redes que salvou a equipa em momentos de aperto, incluindo o penálti defendido com a Polónia. Na final sintetizou sete jogos perfeitos com três intervenções brilhantes e decisivas. Mas não só: no palco maior deu lição notável do que é estar na baliza, portentoso na confiança e na segurança reveladas em cada tomada de decisão. Foi, de longe, o melhor do Euro.
Pepe assinou um grande Euro
Iniciou o caminho como alvo mal escolhido pelo selecionador islandês
Pepe confirmou que é um enorme jogador mas só Lagerback seria capaz de associá-lo a Hollywood – para isso lá estavam CR7, Nani ou Quaresma, génios que nunca lhe passaram pelas mãos. Pepe mandou as brincadeiras de mau gosto para trás das costas e tratou de mostrar o que é: um dos mais extraordinários centrais do futebol actual e, também a uma larga distância, o melhor que pisou o grande palco.
Um titular para a próxima década
O B. Dortmund terá uma palavra a dizer na evolução de um grande jogador
Raphaël Guerreiro graduou-se no Euro’2016 como um lateral-esquerdo de expressão internacional. Jovem (22 anos), com uma curta carreira feita em clubes periféricos como Caen e Lorient, agigantou-se integrado em equipa com outras ambições como é a Selecção Nacional. A atacar é um extremo, a defender tem ainda algo para aperfeiçoar. O futebol português ganhou um titular para os próximos dez anos.»
Mais uma crónica imperdível de Rui Dias. Com ele, com a sua escrita escorreita e culta, com as suas citações sempre apropriadas e no tempo e modo certos, com a sua modelar isenção e desapaixonado e profundo respeito por tudo e todos, qualquer deverá ficar grato por aprender, lendo as suas crónicas.
Sabe bem ler Rui Dias nestes dias que vão consolidando e sublimando o nosso orgulho e legítima vaidade, sem sermos obrigados a rapar do lenço para proteger quem nos rodeia dos nossos espirros de alergia a tanta coisa nojenta que, infelizmente, partilha a mesma redacção e as páginas do seu jornal!...
Afinal no jornal Record ainda vai sobrando alguma decência!...
Leoninamente,
Até à próxima
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