«No 'scouting', ou na observação de jogadores, como prefiram, podemos distinguir três categorias profissionais:
- os analistas e observadores de adversários, no jargão internacional, o 'oposition scout', cujo trabalho é muito focado nos planos do rendimento colectivo, dos comportamentos táctico e estratégico das equipas observadas, e que, para o que aqui nos traz, pouco vem ao caso.
- os olheiros, os verdadeiros, aqueles que dão a dimensão romântica à classe, os garimpadores de diamantes por lapidar, os descobridores dos talentos puros. Normalmente enquadrados em estruturas de prospecção e de formação dos clubes, muitas vezes libertos de vínculos ou objectivos, concentram o seu trabalho nos escalões mais jovens ou até em contextos competitivos menos explorados, como o futebol amador.
- e os 'scouts' que trabalham para as primeiras equipas. Aqueles que respondem a quem efectivamente contrata, seja ele o presidente, o director-desportivo ou o 'manager', conforme a cultura de gestão do clube. Olhos calibrados, com uma cultura e sensibilidade futebolística feitas essencialmente de uma coisa: da observação sucessiva de muitos jogos ao vivo. É essa a fonte que lhes dá uma correcta percepção do valor relativo do jogador observado. A sua missão primária, mais do que a descoberta no mercado da fruta exótica que ainda ninguém provou, é encontrar aquela que está madura ou prestes a estar, que é fresca, que não está tocada nem tem bicho e cujo valor é justo e, ou, pode ser pago por quem lhes encomenda essa avaliação. São essencialmente consultores de investimentos. Mais do que garantirem o derradeiro negócio da China, asseguram que muitos gatos por lebre fiquem por contratar.
Ora, estes 'scouts' de primeira liga, chamemos-lhes assim, por regra mensuram as virtudes versus as fraquezas de jogadores já feitos, profissionais, maiores de idade, que competem já fora do âmbito dos escalões de formação.
Por ser muito exigente e abrangente, quem desempenha esta actividade raramente acumula função com as duas anteriores. Mas ser responsabilizado por investimentos falhados de milhões de euros ou pela decepção de outros tantos adeptos não é pêra doce, pelo que à vinda ou à ida dos cinco, seis ou até sete jogos de profissionais a que se assiste ao vivo por fim-de-semana desportivo, nunca se perde a oportunidade de passar por um sempre salutar jogo de infantis ou juvenis. É muito mais fácil avaliar um jogador aos 21 quando já o conhecemos desde os 15. E foi assim que vi jogar pela primeira vez João Palhinha.
Abençoado por uma estatura que impressiona, de ossatura muito forte, Palhinha passou ao lado daquela fase da passada imberbe própria dos adolescentes que mais saltitam do que correm tal o desequilíbrio entre as hormonas que os animam e uma massa muscular ainda por desenvolver. Essa foi a sua sorte. Em Portugal, não apenas em Alcochete, é prática comum confundir "puxar um jogador" em formação para um nível competitivo que desafie efectivamente as suas capacidades com o falacioso e redutor "queimar etapas".
Assim, em modelos competitivos muito pouco equilibrados como o são as primeiras fases dos campeonatos nacionais nos escalões de formação, os maiores talentos da sua geração marcam passo caso não os ponham a jogar com os mais crescidos. João teve a sorte do seu metro e noventa, de apoios fortes, que, associados à enorme maturidade em campo que precocemente já demonstrava, o empurrarem para o nível onde podia afirmar as suas qualidades... aos olhos de todos.
Mas, reconheço, quem habituado está a comparar homens por vezes tem alguma dificuldade em excepcionar crianças e assim não percebi nem o entusiasmo de alguns profissionais da Academia com aquele rapaz, nem sequer o enorme potencial que tinha para a posição. O futebol está repleto de jogadores bem formados táctica e tecnicamente que, menos ágeis e mais lentos do que os pares, com uns palmitos de altura, mais cedo do que tarde descaem para o centro da defesa onde fazem muitas vezes a diferença entre toscos e durões.
Foi esse o destino que vi para este rapaz de processos simples, de grande capacidade física de protecção do espaço que controlava com autoridade, mas que parecia exprimir-se timidamente com bola, como que envergonhado de umas botas com 2 ou 3 números acima das dos colegas de posição. O gigante dos juvenis a jogar um ano acima, não me desiludiu mas também não me impressionou, tal a forma como involuntariamente haviam inflamado as minhas expectativas.
Já na temporada 2013/2014 deu gosto ver este jogador não tremer em diversos cenários competitivos, no campeonato nacional de juniores, na estreia na 2.ª Liga e na Selecção Nacional de sub-19. Pela presença em campo que sempre demonstrou nessa fase do percurso de um jogador que por vezes se revela fatal, mereceu no meu bloco a sucinta nota de 'jogador' com que assinalo os jogadores desta idade que penso que vão pegar.
Seria suficientemente bom para um dia vir a sentar um campeão europeu com a classe e o estatuto de William Carvalho? Ainda não acreditava. Até mesmo quando já erigia autênticos muros defronte à linha de defesas do Moreirense.
A um número 6 de um grande não basta secar os 40 metros quadrados de terreno de jogo que pisa. Talvez por azar ou teimosia, muito influenciado por aquela primeira impressão do gigantone dos juvenis, nunca lhe havia notado aquele rasgo, ou espontaneidade na construção. Achava-o, simplesmente, curto para um dia jogar a Champions.
Foi preciso esperar para vê-lo expressar-se com toda a liberdade e sempre contida alegria, no futebol positivo do Belenenses de Quim Machado. Só aí me caíram as palas com que me tinha ajaezado quatro anos antes. Tirando o melhor partido do equilíbrio oferecido pela qualidade do trabalho de Vítor Gomes e de André Sousa, Palhinha gozou, mas não abusou, de uma liberdade táctica que talvez nunca lhe haviam dado antes em toda a sua carreira.
Qual 747 na descolagem, pode até parecer jogar parado, mas quando acabarmos de pestanejar, já levantou voo e apanhou qualquer um que lhe tenha disputado a profundidade. Palhinha conseguiu demonstrar que está em campo também para construir, e essencialmente para cobrir um espaço muito mais amplo do que aquele que é dedicado ao trinco clássico.
Demonstrou, até aos mais teimosos como eu, que tem muito mais para dar a uma equipa. Em posse, em condução, ou por via de uma inaudita mobilidade sem bola, até com as tais palas se vê que este jogador oferece em profundidade e amplitude o que é exigível a um médio de equipa grande.
Faltar-lhe-á, por ventura, a 'star quality' nos pormenores que William Carvalho esbanja num dia bom, mas com Palhinha dificilmente haverá dias maus, ainda para mais até o bate na dimensão física que empresta ao lugar. Se falarmos então de jogo aéreo... João, pese embora não seja um prodígio neste parâmetro, deixa a paupérrima capacidade de cabeceamento de William a quilómetros. Mas não serão estes dois números 6 de elevado perfil compatíveis no mesmo onze?
Uma dupla William Carvalho com João Palhinha seria o sonho molhado de muitos técnicos mas no actual esquema táctico de Jorge Jesus tal nunca acontecerá.
Diria Luiz Felipe Scolari: "E o burro sou eu?!"»
Diria Luiz Felipe Scolari: "E o burro sou eu?!"»
(Nuno Félix, Olho no jogador, in Record)
Quase tão certo como o golo de Alan Ruiz no Funchal ter sido legalíssimo, algo me diz que "no actual esquema táctico de J.J. tal nunca acontecerá", mesmo!... E lá volto eu à "cantilena"...
"Hanno finito le parole e parlano le opere"?!...
Leoninamente,
Até à próxima
Uma dupla William-Palhinha não passará, apenas, de um sonho?
ResponderEliminarMas que seria um sonho molhado, ai isso era!